"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

padaoesilva@gmail.com

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Saiu quem?

A certa altura do play-off deste domingo, com a sagacidade que o caracteriza, Augusto Inácio questionava repetidamente, “saiu quem do Benfica?”. A pergunta, está visto, visava demonstrar que o Sporting tinha sido particularmente afetado no defeso, com a perda de João Mário e de Slimani. É um facto. Mas talvez valha a pena ajudar o ex-diretor de relações internacionais do Sporting.
Dos cinco jogadores mais importantes da equipa que venceu o tricampeonato, o Benfica perdeu Gaitán e Renato Sanches e Jonas e Jardel ainda não jogaram, envolvidos que estão nessa praga clínica de proporções bíblicas que afeta o Seixal. Se juntarmos as lesões à vez de Ederson e Júlio César e os escassos 70 minutos de Rafa (o reforço mais sonante), de facto, é caso para dizer que, tirando estes, ninguém saiu do Benfica. No fim, o jogador mais propenso a lesões, Fejsa, é o único sobrevivente do cinco que liderou o Benfica rumo ao 35.
São, na verdade, muitas “saídas”. E se somarmos a saída do cérebro há um ano e o facto de termos uma equipa à deriva, que, é-nos dito, nem sequer treinador tem, a dinâmica de vitória do Benfica é miraculosa.
Ou talvez não. Apesar de tantas saídas, há explicações para o Benfica continuar a vencer. É que “saem” jogadores, mas há coisas que se mantêm: o compromisso competitivo; a intensidade com que se encaram os jogos; a concentração exclusivamente no próprio grupo; a humildade com que se enfrenta os adversários. Tudo qualidades mais difíceis de garantir do que uma mão-cheia de reforços comprados com pouco critério.


publicado no Record de terça-feira 

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Um Nobel dylanesco



Há uma estranheza evidente na atribuição do Nobel da literatura a Bob Dylan, mas há também algo de natural na escolha da Academia.
Dylan é um autor e acima de tudo, na definição exata de Leonard Cohen, “o Picasso da canção”. Alguém que, primeiro, alinhou com o cânone para o levar mais longe (o legado de Woody Guthrie), para logo depois reinventar o lugar da canção de protesto, ao ponto de, por vezes, já nem ser canção e ter deixado definitivamente de ser de protesto. Sem Dylan não haveria Springsteen, não escutaríamos da mesma forma Townes Van Zandt e a reinvenção alt-country e folk de Bonnie Prince Billy aos Wilco seria inviável. Da mesma forma que a canção como veículo primordial para a palavra, nos Mountain Goats de John Darnielle, seria uma impossibilidade. Dylan não criou tudo, mas abriu as portas para quase tudo o que se seguiu e para o que o tem acompanhado.
Dylan é um inovador radical e a sua música provoca um certo desconforto, o medo que pressentimos de um “som estrangeiro”. Mas ser um cantor disruptivo e inovador, por si só, não faz dele um escritor. Contudo, se acreditarmos que a força da literatura reside na capacidade de criar uma voz singular, dissonante e desafiante, Dylan tem na sua lírica uma obra literária com poucos paralelos.
Se nos ficarmos pelos cantores, é certo que Cohen – companheiro de percurso mais próximo do que se crê – tem uma obra mais vasta e mais próxima da literatura como a entendemos. Ao contrário do canadiano, o “bardo do Minnesota” nunca foi romancista popular e a sua poesia não é anterior, nem existe para além das canções. Se bem que “Chronicles, vol. 1” seja, mais do que autobiografia, uma reflexão muito interessante sobre o seu percurso, em Dylan a palavra é inseparável da música e uma está amarrada à outra. Contudo, Dylan tem, a seu favor, a criação de um universo e, com ele, de um adjetivo, “dylanesco”.
O traço artístico mais sublinhado em Dylan é a sua natureza camaleónica. Mudou muito, reinventou-se e, enquanto se reinventava, mudou a música, provocando estranheza e desconfiança no seu próprio público: o Judas que pegou na guitarra elétrica para revolucionar a folk, abandonar a canção de protesto e desfazer qualquer ilusão de que era o porta-voz de uma geração; o filho dileto de Nashville que, entre vénias a Cash, devolveu legitimidade cultural à country; ou o crooner sentimental que destilou o “Great American Songbook” a níveis de limpidez de surpreendente grandiloquência ou até o cantor que, numa paradoxal viragem do destino, se enredou em sermões evangélicos. Scorsese fixou esse Dylan múltiplo, que ninguém conhece na sua plenitude, amarrado a uma errância criativa, no notável “No Direction Home”.
Mas o Dylan que vence o Nobel pode bem ser outro. O Dylan que tem uma lírica dylanesca. Uma poesia que não resulta de um exercício racional, mas, pelo contrário, de um impulso criativo de sentido ambíguo e que é inseparável da música. Uma poesia que pode ser lida e interpretada de todos os ângulos, sem que nenhum se sobreponha. Uma voz rebelde e desconcertante que não está amarrada nem ao seu eu singular nem, muito menos, ao contexto circunstancial da sua época. Uma voz intensa que tem uma poética indeterminada, a um tempo poesia de intervenção política e espelho do seu tempo social, a outro, lírica amorosa, a resvalar para o sentimentalismo. Bob Dylan é todas as vozes, mas não foi apenas todas as vozes ao longo da sua carreira ou quando escutamos os seus discos.
A sua grandeza enquanto escritor está na forma como, de forma concisa, consegue captar, num mesmo poema e numa curta canção, visões variadas, contraditórias e um eu múltiplo, sem nunca deslindar exatamente o sentido último da mensagem. Até porque, muito provavelmente, aliás, o sentido último se perdeu, nunca existiu enquanto construção racional ou a responsabilidade de o traduzir é de quem escuta as canções e ouve as palavras. Se a literatura for apenas uma tentativa falhada de busca da verdade, é bem provável que se encontre mais verdade e universalidade na ambiguidade dylanesca do que em muitos outros autores, bem mais canónicos e percepcionados como escritores.



publicado no Expresso diário de 13 de outubro 

Totti e Horta: a mesma luta

É escusado lutar contra moinhos de vento. De pouco serve resistir ao mundo do futebol feito indústria, aos jogadores que naturalmente se movem por contratos mais generosos; aos clubes transformados em empresas, suspensas em complexas engenharias financeiras; e aos dirigentes que não padecem de angústias clubísticas, desde que os resultados operacionais sejam positivos.
Apesar de tudo, há formas organizadas de resistência ao futebol apenas como negócio racional. Infelizmente, o essencial da oposição está nos adeptos e não nos dirigentes ou nos jogadores. Há, contudo, exceções.
            Francesco Totti. 40 anos, um só clube na carreira. 764 jogos com a camisola giallorossa e um amor incondicional a uma memória do futebol que se foi perdendo. Totti é prova material de que, para sobreviverem, os clubes precisam de exemplos de fidelidade absoluta a uma ideia. De jogadores carismáticos, capazes de preservar a popularidade de um desporto que se transformou numa indústria. Jogadores para quem acima do clube do coração não há mais nada.

            A frase poderá ecoar na cabeça de alguns leitores. Foram as palavras de André Horta na entrevista ao Record. O Horta que vive o Benfica como nós: celebra as vitórias das modalidades e sofre com as derrotas do Glorioso, em qualquer campo. Sim, o Horta pode ser o nosso Totti. Por uma vez, um jogador que não nos abandone, que contrarie a mercadorização do futebol, e que, no balneário, seja a voz do adepto e revele aos profissionais a “chama imensa”. Para já, não se esqueçam - tem apenas 19 anos, mesmo que, a espaços, jogue como o adulto que ainda não é.

publicado no Record de 11 de outubro