O José Rentes de Carvalho tem um blog. De vez em quando, ameaça suspendê-lo, mas depois logo regressa. Há muito tempo que ando para falar do blog e da Ernestina e da Amante Holandesa, que li de um trago e que tenho recomendado a toda a gente. Ainda que seja um tipo da cidade, sem raízes fora de Lisboa, encontrei, por exemplo, na Ernestina alguns traços de um país que ainda assim fui conhecendo na minha infância, em férias de verão. Os livros espantaram-me e só tenho pena que tenham sido para mim uma descoberta tardia. A escrita precisa, depurada a retratar um país que persiste. Mais cínico e realista do que a inclinação que sempre temos para romancear o Portugal rural e bucólico. Hoje, o José Rentes de Carvalho escreve isto no seu blog. Transcrevo por inteiro estas palavras de alerta. Eu sempre desconfiei que as coisas eram afinal assim.
Bucolismo
"Em miúdo acreditava, comecei depois a desconfiar e desde então a minha surpresa aumenta quando oiço ou leio o desfiar sobre as coisas pastoris e boas da vida da aldeia. O solzinho, o ar puro; o ti Alberto que aos noventa todos os dias cava a horta; a Gervásia que faz alheiras à moda antiga; o forno de lenha onde a Laura e a irmã cozem pães de centeio, grandes como rodas de carro, iguaizinhos aos das nossas avós; a rapaziada de calças arregaçadas na pisa das uvas.
Babam-se jornais e revistas a acentuar a "autenticidade" deste viver, pergunta a televisão a gerontes surdos se lhes agradaria a vida fora daqui; aparecem uns jipes de mirones citadinos a fotografar isto aquilo e acham "muito típicos" os casebres arruinados, a fonte velha, as pedras do lagar, aquele castanheiro.
A aldeia? Ó senhores, deixem-se de histórias, não nos incomodem nem venham acordar a sonolência a que nos obrigamos para nos podermos aguentar uns aos outros. Dando-nos os bons-dias, conversando à esquina sobre o tempo, a amêndoa e a carestia, enquanto esperamos o camião do padeiro. Sorrindo e batendo nas costas do filho da puta que à noite empurra o contentor do lixo para a nossa parede. Sorrindo ao filho da puta que com ácido queimou as raízes da oliveira que lhe sombreava o quintal. Sorrindo ao filho da puta que desvia a água da rega. Sorrindo. Sorrindo. Sorrindo e falando manso à grandessíssima que manda o filho mijar à nossa porta, porque a incomoda o ladrar do cão.
Sorrindo e sabendo uns dos outros que não há casa sem pistola."