quarta-feira, 21 de março de 2012
Banhos de Mar, no dia da morte de Tonino Guerra
Há um par de anos, tive o privilégio de jantar em Lisboa com Tonino Guerra, poeta, argumentista e co-responsável pela criação do universo que atribuímos exclusivamente a Fellini. Durante um fim de tarde e noite, partilhei, com não mais de vinte pessoas, as palavras de um contador de histórias admirável, que aos oitenta e muitos anos mantinha os olhos vivos de quem vive numa infância exuberantemente reinventada – como aquela que se vê no Amarcord de Fellini e Guerra. Sei que guardarei muitas das palavras simples ditas por Tonino Guerra. Mas, de tudo o que ouvi, há uma lição de que não me esqueço e que arrisco citar de cor: “Os adultos têm sempre as mãos limpas. Eu tenho oitenta anos e lavo-as muitas vezes ao dia. Mas só quando as tenho sujas me recordo de quando era criança”.
Não pude deixar de me recordar de Tonino Guerra ao ler recentemente um pequeno e espantoso texto da escritora brasileira, Clarice Lispector, Banhos de Mar. Aquilo que para Tonino são “as mãos sujas”, são para Lispector “os banhos de mar”: metáforas para um regresso a um paraíso perdido, a uma infância absoluta de sensações e à qual somos capazes de regressar, num caso, através da sujidade das brincadeiras, noutro, com os mergulhos no mar e o cheiro a sal no corpo. “Somos crianças feitas para grandes férias”, escreveu Ruy Belo num dos mais magníficos poemas em língua portuguesa (A orla marítima). É essa a nossa natureza: buscar incessantemente a felicidade num feixe de luz que nos transporta para um passado que até pode não ter existido como o vemos hoje. Pouco importa. É esse passado, rescrito e reinventado, que recordamos. O correr dos tempos intensifica esse retorno difuso às sensações de quando estávamos crianças, surpreendidos com a descoberta. O sentimento tende a agravar-se com a chegada dos filhos, quando, ao olharmos para eles, vemos nos seus sorrisos deslumbrantes a nossa própria felicidade.
Clarice Lispector conduz-nos com palavras doces para uma infância de tranquilidade, feita de banhos madrugadores no mar do Recife, levada pela mão do pai: “O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele”. O lugar era onde a felicidade começava e tudo era assombrosamente novo: “essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro”. A impressão táctil desse passado resistiu, a roupa e os cabelos impregnados de sal que iam secando no regresso a casa. E, no fim, uma crença que ficou para a vida, que era também a partilha de um léxico familiar: “meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar”.
Leio e releio o texto de Clarice Lispector e quase que sinto o cheiro da infância – a t-shirt que se colava ao corpo com o sal que a costa atlântica portuguesa nos dá em doses generosas; as noites bem dormidas; os dias feitos de mergulhos e carreirinhas infindáveis nas ondas de verão que pareciam maiores do que realmente eram; as correrias; o bicicletar sem rumo; e mais tarde os primeiros take-offs, partilhados com um par de amigos. Tudo se torna nítido, como é próprio dos prazeres iniciais.
Mas o texto de Clarice tem um tom sombrio no final, a impossibilidade de regressar a esses tempos de banhos de mar: “A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca.”
Pois eu sei como se reencontra esse tempo. Pego na prancha, remo para o outside e, mesmo que não sorria como faz o meu filho, em cada onda que apanho fico perto do seu mundo fácil. É também para isso que serve o surf, para recuarmos ao tempo da ingenuidade, às suas sensações, aos seus prazeres e à sua libertinagem. Dentro de água tudo o resto desaparece e podemos beber, nas ondas, o mar. Depois, no regresso à Terra, o peso delicado do sal no corpo ajuda a sedimentar a memória da infância.
texto publicado em 2007 na SurfPortugal e entretanto editado no "Sal na Terra".