“if songs
were lines in a conversation/the situation would be fine”.
Hazey Jane II
25 de Novembro de 1974. Em
Tanworth-in-Arden, uma pequena vila nas midlands
britânicas, morria aos 26 anos Nick Drake. Com uma existência reclusa, sem
reconhecimento em vida, deixou um legado mais influente do que popular. Quarenta
anos passados da sua morte, não é possível compreender a folk das últimas
décadas sem escutar a sua música.
Ao contrário de outros génios musicais
atormentados, desaparecidos tragicamente antes dos 30 anos, não há registos
filmados de Drake, são escassas as gravações áudio e quase inexistentes os
depoimentos. Tudo o que resta para o recordar é um conjunto de fotografias,
relatos de amigos e familiares e a sua música. Mas, mesmo essa, limita-se a duas
horas, divididas entre 31 canções, repartidas por três álbuns, lançados entre
os 20 e os 24 anos de idade. O culto em torno de Drake baseia-se, por isso,
numa combinação entre o reconhecimento da sua voz única e o mistério em torno
de alguém que permanece um desconhecido.
É tentador ver a música de Drake como uma demorada
nota de suicídio. Há, de facto, uma dimensão de fatalismo em tudo o que fez. Fruit Tree, uma das canções do seu
primeiro disco, pode ser lida como uma profecia que se autorrealiza (Forgotten while you’re here/remembered for a
while/they’ll all know/that you were here when you’re gone). Mas Drake
não pode ser reduzido a um “Santo Padroeiro dos deprimidos”, como por vezes é
sugerido. Tirando o período posterior à gravação de Pink Moon, em que esteve internado em instituições psiquiátricas, a
sua timidez e introspeção não significavam que estava enredado na depressão que
haveria de o fazer desistir da vida. As próprias letras das suas canções, se
bem que repletas de alusões depressivas, deixavam também entrever fogachos de
luz, num contraclamor. Como recorda o seu produtor Joe Boyd, “Drake sofria de
depressão, mas a sua música não era função dessa depressão”.
Criador de uma folk idiossincrática,
musicalmente é a expressão de uma contradição: um conservador radicalmente
inovador. Quando lançou o seu primeiro disco, em 1969, Dylan tinha entrado na
fase eléctrica e Tim Buckley abraçado uma folk de pendor psicadélico (para
referir duas das suas grandes influências). Drake manter-se-ia preso a uma
visão tradicionalista, fixando uma leitura britânica da folk. O seu
conservadorismo não deve ser confundido com um olhar estático e não o impediu
de ser um radical – na forma como combinou um cantar quase respirado, sem
vibrato, de uma fragilidade que parece a ponto de se quebrar, com um dedilhar
de guitarra complexo, num compasso atípico, por cima de uma capacidade lírica
que parecia encerrar toda a tristeza do mundo. Na Pitchfork, Jayson Green definiu-o como “dolorosamente
inglês”. Talvez seja essa a marca mais profunda da sua música – um cântico de além-memória que se encadeia
na paisagem bucólica da Inglaterra rural.
Nick Drake é um produto do seu meio e
do seu tempo e o epítome da cultura posh britânica
de tendências artísticas. Nascido num dos pontos mais longínquos do Império, na
Birmânia, onde o seu pai trabalhava, mudar-se-ia para o Reino Unido aos seis
anos, vivendo num ambiente rural, com todos os confortos, numa família com
particular sensibilidade cultural (o talento musical tê-lo-á herdado da mãe,
também ela cantora e escritora de canções, e a sua irmã foi uma actriz reconhecida
– aliás, Nick foi muito tempo “o irmão de Gabrielle Drake”). Esse ambiente
familiar está bem retratado em Family
Tree, registo editado em 2007, onde se escutam pequenas experiências
musicais em família, que antecipam a sua sonoridade.
Foi enquanto estudante universitário de
literatura inglesa que a sua identidade criativa se revelou. Em Cambridge viveu
dividido entre os círculos de classe média alta a que pertencia e o universo de
contracultura que começava a ganhar espaço e encontrou na poesia mística de
Blake e Yeats o mesmo espelho do universo pastoral que lhe era familiar. Chegou
a partilhar uma banda com Chris de Burgh e um sobrinho neto de John Maynard
Keynes, os Perfumed Gardeners, mas
foi a solo que consolidou a combinação singular de um dedilhar único da
guitarra com uma voz recolhida e profunda.
Estudante cada vez mais relapso, trocaria
Cambridge pelo circuito de bares londrinos, onde seria descoberto por um dos
membros dos Fairport Convention e
apresentado ao produtor Joe Boyd (que se tornaria colaborador permanente e um
conservador do seu legado). Com 20 anos, grava o seu primeiro disco e, para
surpresa dos músicos consagrados que o acompanham em estúdio (entre eles,
Richard Thompson), impõe a presença do seu colega de faculdade e amigo, Robert
Kirby, que fica responsável pelos arranjos. Kirby é quem cria as texturas
sonoras que, muitas das vezes, funcionam como uma contra-melodia para a
guitarra e a voz de Drake. Five Leaves
Left, lançado em 1969, era ao mesmo tempo um disco de estreia e a obra
muito inovadora de um autor com maturidade. Uma estreia promissora que
anunciava uma carreira de glória.
Começam também aí os problemas
psicológicos. Desconfortável em palco, incapaz de dar entrevistas ou participar
em ações promocionais, as vendas do disco de estreia revelam-se medíocres. Regressa,
no entanto, a estúdio para gravar Bryter
Layter. De novo acompanhado por um conjunto de parceiros notáveis – entre
eles, um multi-instrumentista galês, acabado de regressar de Nova Iorque, onde
tinha mudado a face da música de vanguarda e o rock alternativo. Com John Cale
grava duas faixas e tem uma ajuda preciosa na complexificação da sua sonoridade,
audível, em particular, em Northern Sky.
Uma vez mais, um disco que tinha tudo para dar certo, não vende. Segue-se, em
1972, Pink Moon, um álbum ainda mais
curto do que os anteriores, fruto de uma sessão de estúdio rápida e a solo e
que tem a curiosidade de ter sido parcialmente escrito em Portugal, durante a
estadia em casa do seu editor, Chris Blackwell, fundador da Island Records.
A sua situação material degrada-se e retorna
a Far Leys, a casa dos pais. No regresso, leva com ele todas as promessas por
cumprir. Havia vendido pouco mais de 15 mil discos e a sua vida parece, cada
vez mais, decalcada das experiências mentais e pessoais dos grandes autores do
romantismo. Uma sensibilidade extrema, uma inclinação para a introspeção,
muitas das vezes tomada como misantropismo, mas que no fundo revelava uma
capacidade única de observar, e o falhanço em vida. A sua irmã conta que ele se
tornou “mais silencioso à medida que viu mais” e uma amiga próxima, Lady Victoria
Waymouth, descreve-o como, “a pessoa mais espectral que alguma vez conheci”.
O Drake atormentado por dilemas
existenciais, ensombrado por uma depressão crescente, que hoje conhecemos, é o
desse período. A mãe, Molly Drake, classifica a sua retirada lenta como uma
“rejeição do mundo”. Joe Boyd sustenta, no entanto, que, no final da sua vida,
Drake vivia também uma insatisfação com o falhanço comercial. Inicia-se, então,
uma espiral de degradação, que assume contornos físicos. Enclausurado em casa, torna-se
monossilábico, não comunica e começa a depender de antidepressivos.
No verão de 1974, regressa a Londres para
uma última sessão de estúdio, do que poderia ter sido o seu quarto álbum de
originais. Por essa altura é incapaz de tocar guitarra e cantar ao mesmo tempo.
Dessa sessão, sobrariam quatro canções, onde se entrevê ainda o toque de génio.
Entre estas, Black Eyed Dog,
inspirada na descrição de Churchill para as depressões.
Ao contrário de outros mitos da música
contemporânea, desaparecidos precocemente, não resta nada por editar do espólio
de Drake – não há bootlegs, nem
registos ao vivo, muito menos colaborações mitificadas. Tuck Box, lançado este ano, encerra o mundo das reedições: a
discografia completa, remasterizada, dentro de uma caixa que é uma réplica da que
a sua mãe utilizava para enviar bolos semanalmente para o filho, então interno
no Marlborough College.
É poderoso o mito do rapaz nascido em
berço dourado enredado numa depressão e que deixou uma obra promissora e não
reconhecida em vida. Drake foi, nessa medida, um herói romântico dos nossos
dias. Mas, por si só, essa reminiscência do romantismo não seria suficiente
para explicar a atualidade do seu legado musical. Na sua toada lenta e cantar
delicado, manifesta-se uma confissão profunda das coisas primeiras, capaz de
cruzar, no seu dramatismo existencial, o universal com o singular, como só a
melhor arte consegue. Como defende o crítico musical Ian MacDonald no seu
ensaio seminal, Exiled from Heaven, a
música de Drake reaproxima-nos de partes de nós que a vida moderna tende a
erodir.
Preso às tormentas da
passagem para a vida adulta, o que perdura
é a memória de um rapaz que se deixaria levar por uma dose excessiva de
antidepressivos, na noite de 25 de Novembro de 1974. Drake viveu isolado e
morreu sozinho, em casa dos pais, demonstrando que ninguém é capaz de proteger
ninguém do sofrimento.
(publicado no Atual do Expresso de 29 de Novembro. A zona de conforto de 21 de Novembro foi dedicada em exclusivo a Nick Drake e pode ser escutada aqui)