quarta-feira, 29 de julho de 2009
Da onda que se vê no mar
“Um surfista olhando o mar...está vendo ou está sendo?”, pergunta o Pepê César. Raro é o dia que não me cruzo com esta citação, que encabeça a Goiabada do Júlio Adler. Quando a leio, quase fico com a certeza que o modo como se olha o mar é indicador absoluto do nosso temperamento. O surf enviesa esta minha percepção, mas o meu “léxico familiar” é também decisivo.
Contam as “lendas familiares” que o meu Avô paterno tinha por hábito perguntar aos jovens que se apresentavam, se gostavam de pescar. Perante a surpresa e as frequentes respostas negativas, o meu Avô logo atirava, de modo directo: “não é, portanto, dado à contemplação”. O meu Avô nunca pescou, pese embora tentativas frustradas de aprender a arte, nos Verões dos anos cinquenta, com os pescadores de uma Ericeira de praias desertas e de ondas sem surfistas. Mas, sendo ele próprio um contemplativo, sabia que o mar encerrava o espaço adequado para o espírito se absorver. A pesca era um pretexto – como o surf? – para virar as costas ao mundo e fixar-se na natureza essencial das coisas. Olhando. Pescar ou não, seria, para ele, certamente uma irrelevância. O que importava era a disponibilidade para a ideia de pescar.
O escritor italiano Italo Calvino nunca surfou e não sei se alguma vez se dedicou à pesca. Mas Palomar, o seu último livro, publicado um par de anos antes da sua morte (1985), começa com uma leitura de uma onda. Não se trata, é verdade, de uma leitura contemplativa. Afinal, lembra Calvino, para a contemplação é necessário um temperamento, um estado de espírito e um conjunto de circunstâncias externas adequadas e no Senhor Palomar nenhuma destas três condições se verificava. Não por acaso, Palomar enfrenta dificuldades para ler a onda, para a interpretar: “isolar uma onda, separando-a da onda que imediatamente se lhe segue e que parece empurrá-la, e que por vezes a alcança e a arrasta consigo, é muito difícil; assim como separá-la da onda que a precede e que parece arrastá-la atrás de si em direcção à costa, salvo quando depois, eventualmente, se volta contra ela, como que para a deter.”
Ao longo de cinco páginas, a descrição detalhada de Calvino serve para revelar um paradoxo: enquanto ao Senhor Palomar faltavam as competências para ler a onda, o que lhe provocava tensão, para nós, surfistas, é fácil descodificá-la e ao olharmos para uma onda somos apenas envolvidos por um desejo intenso, ainda que de calmaria.
Enquanto o Senhor Palomar sofria com a identificação do percurso visual adequado para seguir uma onda, os surfistas partilham um olhar sequencial quando olham o mar. Contemplamos todos do mesmo modo as ondas: primeiro, as linhas que se aproximam, logo depois o sítio onde a onda começa a quebrar, formando as primeiras espumas; seguimos então o pocket, tentando perceber onde a onda se reforma e abre espaço para reganharmos velocidade através das várias junções, até ao momento em que a onda se desvanece por ter encontrado um excesso de água ou, pelo contrário, fecha, fazendo-nos voltar ao início. Por mais ondas que se ergam no mar, é este invariavelmente o caminho mental que percorremos quando as vemos.
O que para os outros se afigura difícil de “ler” é, para os surfistas, natural, surge com facilidade e quase parece ser parte de nós. O surf provoca um desejo de acção, de remar para as ondas e deslizar na sua superfície. Mas, mesmo que não sejamos dados a pescarias, dá-nos também um entendimento do mar que é feito de uma inescapável inclinação contemplativa. É por isso que, depois de embrenhados no surf, quando olhamos para o mar já não estamos apenas a ver. Estamos também a aproximar-mo-nos de nós mesmos. A ser.
publicado no Sal na Terra e um pretexto para anunciar que o Senhor Palomar anda pela blogosfera.
(tal como no livro, a foto é do Ricardo Bravo)