"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Há muita falta de memória no jornalismo

Em 1997, fui durante uns tempos colunista do jornal A Capital (jornal no qual, aliás, voltei a escrever, em 2004/2005), então propriedade do grupo Edimpresa - o tal em que, segundo, Henrique Monteiro, os colunistas são absolutamente livres. Na sequência da censura a Carreira Bom, escrevi, ingenuamente, este artigo. Na véspera de publicação, enviei-o para o jornal, no dia seguinte, ao contrário do habitual, o artigo não fora publicado. Nem sequer se deram ao trabalho de justificar a censura. A história é, essencialmente, pessoal e nem eu próprio me lembrava bem do que havia escrito; hoje, encontrei o texto não publicado num back-up. Tem a sua piada e uma certa actualidade, designadamente as citações de Paulo Portas.

Elementar, “Meu Caro” Portas
Já sabíamos que conquistas básicas, elementares e justas dos trabalhadores têm vindo nos últimos anos a ser postas em causa. Paulatinamente os patrões vêm sujeitando empregados: são as horas extraordinárias que não são pagas, os inacreditáveis entraves às idas à casa de banho e, talvez aquilo que é mais decisivo, o regime de medo que resulta da precariedade do emprego e que diminui decisivamente a capacidade reivindicativa dos trabalhadores. Mas se sabíamos que isto se passava na industria têxtil endividada (mas em que os patrões se passeiam impunemente de Ferrari), nos bancos e no tecido empresarial português resistente à modernização, não sabíamos era que esta lógica de autoritarismo tinha ocupado também, a esfera, tradicionalmente autónoma e liberal, dos meios de comunicação social.
A verdade é que os indícios ténues já se faziam sentir – bastava ler com atenção certos jornais e ver como as notícias eram tratadas. Mas foi preciso assistir ao despedimento de João Carreira Bom (JCB) do Expresso para termos a confirmação empírica. Esta tendência precisava contudo dum suporte teórico. Afinal, não há regime totalitário que tenha vingado sem uma legitimação conceptual, sem uma clarificação das suas práticas. O Dr. Paulo Portas, na sua coluna do Independente de 31/10, deu-se ao trabalho de clarificar as águas e teorizou sobre o para ele justo despedimento de JCB.
Antes de mais um elogio. O artigo do Dr. Paulo Portas tem uma série de virtudes. É frontal, clarificador e coerente com aquilo que o seu autor costuma defender. Nos dias que correm estas qualidades não são desprezíveis, bem pelo contrário. Mas se do ponto de vista formal há que louvar o artigo do Dr. Paulo Portas, já quanto à substância o seu texto é não só grave, como coloca em causa princípios elementares do jornalismo e consequentemente da democracia.
De acordo com o Dr. Portas, o fim da coluna de JCB, não tendo sido uma decisão agradável de tomar por parte do director do Expresso, foi contudo uma consequência “rigorosamente inevitável” face ao que o cronista escreveu. E foi-o porque, de acordo com as suas próprias palavras, “o dono de um jornal não tem o dever de suportar ofensas impressas no papel em que ele próprio investiu. (...) Não compreender este princípio é supor que a função do capital é pagar, comer e calar, enquanto a responsabilidade do jornalista ou, no concreto, do colunista seria inatacável e, sobretudo, intocável. Em parte alguma do mundo as coisas são assim. Muito menos na iniciativa privada que, por natureza, é privada nos seus critérios” (sic).
Como facilmente se depreende deste excerto, o artigo do Dr. Portas é particularmente grave, na medida em que legitima uma nova prática, resultante da máxima: detenho o capital, posso e mando escrever o que quero. Isto ao mesmo tempo que coloca em causa dois princípios elementares, garantes de um jornalismo imparcial.
Primeiro, um jornal, ou outro meio de comunicação social, não é um negócio privado como outro qualquer. É que, para utilizar uma parábola “famosa”, um jornal, porque faz opinião, vende presidentes da República e vender presidentes é substancialmente diferente de vender sabonetes. Há uma responsabilidade social por parte da comunicação social que reside no facto de esta ser, não só um pilar fundamental dos regimes democráticos, mas também, um garante da autonomia dos cidadãos face ao Estado e face à esfera económica. É por isso que, ao contrário do que o Dr. Portas quer fazer crer, a “função do capital” é mesmo pagar, comer e calar. Isto é, investir, arrecadar os lucros e libertar as redacções de qualquer tipo de constrangimentos.
Segundo, de facto a responsabilidade dos jornalistas deve ser “atacável”, mas deve sê-lo não quando estes criticam o “dono” mas, bem pelo contrário, quando sonegam ou deturpam informação por esta ser prejudicial ao “dono”. Como tem lembrado Ferreira Fernandes na Visão, de acordo com aquilo que o Dr. Portas defende, aos jornalistas do Público não seria permitido publicar notícias críticas em relação à Sonae, aos do DN em relação aos cinema Lusomundo, aos do Expresso em relação à SIC e ao próprio Ferreira Fernandes, tendo em conta que o capital da Visão é maioritariamente suíço, não seria permitido questionar o sigilo bancário helvético. Ora, parece-me um princípio básico que os jornalistas devem ser autónomos e livres de pressões na produção do seu trabalho. Afinal, são eles que assinam as notícias e, com essa assinatura, os leitores esperam que a responsabilidade do que vem escrito seja um exclusivo do autor do texto, livre da influência de quem lhe paga.
Por tudo isto lhe digo “meu caro” Portas que, caso estejamos interessados em defender a imprensa livre – não só dos poderes públicos mas cada vez mais, dos poderes económicos -, é elementar assegurar a autonomia de quem escreve nos jornais. A legitimação do despedimento de JCB que desenvolveu no seu artigo de há duas semanas é um passo decisivo para colocar fim a essa autonomia, dando visibilidade a uma prática que na sombra já se fazia sentir. Antes assim. Ao menos passamos a saber o grau de dependência que tem aquilo que lemos. Designadamente n’ “O Independente”.

artigo enviado para A Capital, algures em Outubro de 1997, e não publicado.