"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

padaoesilva@gmail.com

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O maior escritor de surf do mundo


A escrita é o prolongamento da vida por outros meios. Apesar disso, sabemos quem é o melhor surfista do mundo, mas nunca discutimos quem melhor escreve sobre surf. A questão é igualmente importante. Temos as fotografias, os vídeos e os relatos orais, mas só na palavra escrita conseguimos de facto encontrar uma continuação da experiência de surfar uma onda, com todas as suas sensações e matizes. Só no surf escrito conseguimos com detalhe isolar os traços mais marcantes do surf surfado. Ainda assim, escreve-se pouco sobre surf e ainda menos sobre surf em português. Mas, se me perguntarem quem é o melhor escritor de surf do mundo, eu não hesito na resposta. É mulher, é portuguesa e nunca escreveu sobre surf. Mais, se alguma vez reparou num de nós, de prancha no mar, é coisa que infelizmente nunca saberemos.
José Tolentino Mendonça, numa entrevista recente à LER, sugeria que a poesia, depois de escrita, é apropriada por quem a lê. Ganha uma vida nova, tem uma consciência superior, inclusive, à do próprio autor. Eu, sempre que leio os textos de Sophia de Mello Breyner Andresen, tenho essa exacta noção. Aqueles poemas logo se libertam do mar parado da Grécia, da calmaria tranquilizadora e do seu calor límpido, vindo de um jardim inicial. Aproprio-me deles: é o mundo do surf que neles entrevejo e não hesito em dizer que nunca ninguém escreveu sobre surf assim. Sophia sabia do que falava quando escreveu que “o poema sabe mais do que o poeta”. Os seus poemas sabem mais sobre surf do que Sophia podia algum dia ter imaginado.
A ideia já me perseguia, mas tive a certeza que havia em Sophia alguém que escrevia como ninguém sobre o nosso mundo ao ler um assombroso texto de Maria Velho da Costa, sua amiga, em “Evocação de Sophia”. “Sophie en rose”, assim se chama o curto relato de um banho de mar onde o Atlântico se mescla com o Mediterrâneo. Quem escreve é Maria Velho da Costa, mas o que lemos é a paixão de Sophia pelo mar: “poucas coisas são tão alegres como o egoísmo de duas crianças síntonas no seu brinquedo, que era o mar”. A alegria absoluta e infantil é o traço mais marcante do surf e ninguém, como Sophia, olha para esse passado com uma luz cristalina mas marcada a mar. O mar é a sua biografia poética, do mesmo modo que é a nossa.
Percorramos a antologia Mar, onde se juntam os seus poemas que têm o elemento marítimo como referência e neles nos descobrimos, surfistas.
Os nossos temas mais marcantes estão todos lá: a presença obsessiva do mar (“Mar, metade da minha alma é feita de maresia”); o espaço dos encontros connosco mesmos (“As ondas quebravam uma a uma/Eu estava só com a areia e com a espuma/Do mar que cantava só para mim”); um território do mundo mas também manifestação do sagrado (“Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim/(...) Que momentos há em que eu suponho/Seres um milagre criado só para mim”); uma exaltação da liberdade absoluta (“Aqui nesta praia onde/Não há nenhum vestígio de impureza,/Aqui onde há somente/Ondas tombando ininterruptamente/Puro espaço e lúcida unidade,/Aqui o tempo apaixonadamente/Encontra a própria liberdade”); o lugar de contemplação (“Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela”); e a recondução a um lugar de origem (“O cântico da longa vasta praia/Atlântica e sagrada/Onde para sempre a minha alma foi criada”).
Não tenho dúvidas, o melhor livro sobre surf alguma vez escrito é a Antologia temática de Sophia, dedicada ao Mar. Nestes textos encontramos uma dicção exacta, que nos guia com uma desarmante simplicidade através do mar, das ondas, das praias e que nos permite elevar os nossos olhares sobre o mundo e a experiência do surf. Nunca nenhuma voz conseguiu, de modo tão preciso, combinar o dramatismo próprio da experiência marítima com um olhar branco e imaculado sobre a satisfação absoluta que dela resulta.
Gosto de pensar que nós, surfistas, somos todos concretizações materiais da experiência abstracta descrita por Sophia. Não por acaso, a sua inscrição final é a que, de algum modo, todos os surfistas têm tatuada no espírito: “quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto do mar”. É essa a nossa secreta ambição, um dia voltarmos para viver todos os momentos em que não pudemos surfar ondas. Uma forma que encontrámos para compensar os pequenos demónios quotidianos.

publicado na coluna 'Sal na Terra' da SurfPortugal de Julho e republicado aqui, no dia em que é apresentada a antologia poética de Sophia de Mello Breyner Andresen.