Os números falam por si: em 2016, apenas com uma partida por
disputar, o Benfica leva 43 vitórias em 53 jogos. No campeonato, somou
93 pontos, o Sporting 78 e o Porto 71. Um registo que destoa em
Portugal, mas que impressiona mesmo nas comparações europeias. Se
pensarmos nos clubes de topo das principais Ligas, todos têm menos
vitórias do que Benfica neste ano civil. Do Real à Juventus, passando
pelo Bayern e PSG.
O que explica esta senda vitoriosa do Glorioso, que nos devolve a uma hegemonia que chegou a parecer uma miragem do passado?
Em primeiro lugar, estabilidade nas opções estratégicas. Sendo
verdade que o futebol vive do momento, o Benfica não alterna entre
voltas olímpicas aquando de vitórias conjunturais, nem entra em
depressão com os desaires. Pelo contrário, na vitória e na derrota
percebe-se que há um rumo, que passa por um projeto desportivo, cada vez
mais, assente na potenciação de jovens talentos.
Depois, critério na escolha de protagonistas (dos jogadores aos
treinadores). Da equipa da temporada passada, até dezembro, o Benfica
perdeu quatro jogadores fundamentais (Gaitán, Renato, Jonas e Jardel).
Paradoxalmente, pouco mudou em termos de resultados. Sai Renato do meio,
entra Pizzi ou Horta; perdemos Gaitán e joga Cervi ou Rafa. Jonas e
Jardel demoraram a voltar e quem os substitui quase que os faz esquecer.
E fica-se com a sensação que, saindo mais alguém, já há ou surgirá
substituto à altura. No Benfica de hoje, não há insubstituíveis.
No fim, claro está, a sorte desempenha o seu papel. Mas mesmo essa, como é sabido, nunca é fruto do acaso.
publicado no Record de 27 de dezembro
terça-feira, 27 de dezembro de 2016
terça-feira, 20 de dezembro de 2016
Um cheirinho a Jonas
Há perto de dois anos, logo a seguir à estreia de
Jonas, escrevi aqui que o brasileiro ia ser mais importante por aquilo
que ia oferecer ao futebol atacante do Benfica do que pelos golos que
iria marcar. 86 jogos e 68 golos depois, devia reconhecer que me enganei
redondamente. Talvez não seja o caso.
Por estranho que possa parecer para um jogador que marca em média 30 golos por temporada, Jonas é essencial pela sua participação no futebol ofensivo do Benfica e não pela veia goleadora. Tenho, aliás, a convicção que Rui Vitória tem tido no Benfica dois aliados estratégicos: Jorge Jesus, que, por antinomia, o ajudou a consolidar a liderança no balneário; e Jonas, que, em campo, superou os problemas táticos da equipa.
Uma vez mais, será esse o papel de Jonas. Repare-se: na Amoreira, o Benfica sofreu contra uma equipa fraca e após uma substituição obtusa – a troca de Cervi por Mitroglou –, ofereceu 10 minutos ao Estoril, que podiam bem ter custado pontos. Pois, tudo mudou com a entrada de Jonas. Como que para provar que, num jogo coletivo, um só jogador pode fazer toda a diferença, Jonas esbanjou inteligência e qualidade futebolística, matando o jogo.
Num Benfica que vive em aceleração permanente e que tem dificuldade para controlar um jogo com posse de bola, Jonas fará toda a diferença. Com ele em campo, o Benfica voltará, com critério, a saber pausar o jogo e, quando em vantagem, deixará de sofrer. Claro está que o brasileiro se encarregará, também, de marcar os golos que os outros falham ou nem sequer vislumbram.
publicado no Record de 20 de dezembro
Por estranho que possa parecer para um jogador que marca em média 30 golos por temporada, Jonas é essencial pela sua participação no futebol ofensivo do Benfica e não pela veia goleadora. Tenho, aliás, a convicção que Rui Vitória tem tido no Benfica dois aliados estratégicos: Jorge Jesus, que, por antinomia, o ajudou a consolidar a liderança no balneário; e Jonas, que, em campo, superou os problemas táticos da equipa.
Uma vez mais, será esse o papel de Jonas. Repare-se: na Amoreira, o Benfica sofreu contra uma equipa fraca e após uma substituição obtusa – a troca de Cervi por Mitroglou –, ofereceu 10 minutos ao Estoril, que podiam bem ter custado pontos. Pois, tudo mudou com a entrada de Jonas. Como que para provar que, num jogo coletivo, um só jogador pode fazer toda a diferença, Jonas esbanjou inteligência e qualidade futebolística, matando o jogo.
Num Benfica que vive em aceleração permanente e que tem dificuldade para controlar um jogo com posse de bola, Jonas fará toda a diferença. Com ele em campo, o Benfica voltará, com critério, a saber pausar o jogo e, quando em vantagem, deixará de sofrer. Claro está que o brasileiro se encarregará, também, de marcar os golos que os outros falham ou nem sequer vislumbram.
publicado no Record de 20 de dezembro
terça-feira, 13 de dezembro de 2016
O resto são cartolinas
Rui Vitória definiu uma estratégia inteligente para o desafio com o
Sporting. Antecipando a inferioridade do Benfica no meio-campo (onde a
dupla Adrien e William é muito forte), escolheu contornar as
dificuldades. Deu a iniciativa ao Sporting, jogou em transições rápidas e
explorou o ponto fraco dos de Alvalade, a defesa, em particular o
espaço entre centrais e laterais. O futebol direto de Ederson para
Jiménez não deu descanso à equipa leonina. Teria sido um erro se o
Benfica tem jogado em ataque organizado frente ao Sporting que é forte
no ataque organizado.
Mas se o Benfica levou vantagem na estratégia, Jorge Jesus foi perspicaz na leitura tática que fez do evoluir do jogo. A perder, soube mexer no onze, melhorando muito o futebol do Sporting. Pelo contrário, Vitória, num primeiro momento, fez a equipa recuar muito e afastou Pizzi do centro nevrálgico. Arriscou demasiado e só após a entrada de Cervi a equipa se recompôs, para não mais perder o controlo.
Se o Benfica levou vantagem na estratégia e o Sporting na tática, o que é que explica o resultado?
Os mesmos fatores que têm feito diferença nos últimos tempos: a qualidade individual dos jogadores do Benfica e o empenho que colocam em cada disputa. Uma equipa que se habitou a ganhar, mas que aborda cada jogo como se fosse determinante. Sintomaticamente, no final da partida, os jogadores celebraram a vitória, em círculo no meio do relvado, como se tivessem conquistado algo decisivo. Quando assim é, a sorte do jogo tende a sorrir e torna-se bem mais fácil controlar o que no futebol é aleatório. O resto são ‘cartolinas’.
publicado no Record de 13 de dezembro
Mas se o Benfica levou vantagem na estratégia, Jorge Jesus foi perspicaz na leitura tática que fez do evoluir do jogo. A perder, soube mexer no onze, melhorando muito o futebol do Sporting. Pelo contrário, Vitória, num primeiro momento, fez a equipa recuar muito e afastou Pizzi do centro nevrálgico. Arriscou demasiado e só após a entrada de Cervi a equipa se recompôs, para não mais perder o controlo.
Se o Benfica levou vantagem na estratégia e o Sporting na tática, o que é que explica o resultado?
Os mesmos fatores que têm feito diferença nos últimos tempos: a qualidade individual dos jogadores do Benfica e o empenho que colocam em cada disputa. Uma equipa que se habitou a ganhar, mas que aborda cada jogo como se fosse determinante. Sintomaticamente, no final da partida, os jogadores celebraram a vitória, em círculo no meio do relvado, como se tivessem conquistado algo decisivo. Quando assim é, a sorte do jogo tende a sorrir e torna-se bem mais fácil controlar o que no futebol é aleatório. O resto são ‘cartolinas’.
publicado no Record de 13 de dezembro
terça-feira, 6 de dezembro de 2016
A palhaçada do antijogo
Discute-se muito o recurso a tecnologias como forma de promover a verdade desportiva. Mas há razões para ceticismo.
Primeiro, porque o futebol sem controvérsias perderia uma parte do encanto e deixaria de ser tema de conversa durante o resto da semana; depois, basta ver programas televisivos onde se discutem ‘ad nauseam’ lances duvidosos para se perceber que a verdade é uma quimera subjetiva que nenhuma realização televisiva conseguirá desvendar; finalmente porque os recursos tecnológicos necessários a uma verdade insofismável criariam uma desigualdade difícil de gerir, entre jogos com muitas câmaras e outros com poucas.
Mas enquanto a verdade segue por caminhos sinuosos, há uma outra praga que, se impossível de ser irradiada, podia ser combatida: o antijogo. Não têm faltado exemplos recentes no campeonato português em que não se joga futebol nos últimos 15 minutos da partida. Aqui o problema não é de verdade desportiva, é a degradação de um espetáculo que é pago e que deve estar ao serviço de quem o presencia. Nada justifica a persistência da palhaçada do antijogo e há formas de a combater. Dois exemplos, que podiam ser ponderados.
Pôr fim às paragens para assistir jogadores indispostos. Tal como no râguebi, a equipa médica devia entrar em campo e ser encarada como participando no jogo. Nos últimos cinco minutos das partidas, o cronómetro devia parar sempre que a bola não estivesse em movimento, à imagem do que acontece em muitos desportos de pavilhão. Não são soluções miríficas, mas ajudariam a contrariar os incentivos perversos que hoje existem para que o antijogo compense.
publicado no Record de 6 de dezembro
Primeiro, porque o futebol sem controvérsias perderia uma parte do encanto e deixaria de ser tema de conversa durante o resto da semana; depois, basta ver programas televisivos onde se discutem ‘ad nauseam’ lances duvidosos para se perceber que a verdade é uma quimera subjetiva que nenhuma realização televisiva conseguirá desvendar; finalmente porque os recursos tecnológicos necessários a uma verdade insofismável criariam uma desigualdade difícil de gerir, entre jogos com muitas câmaras e outros com poucas.
Mas enquanto a verdade segue por caminhos sinuosos, há uma outra praga que, se impossível de ser irradiada, podia ser combatida: o antijogo. Não têm faltado exemplos recentes no campeonato português em que não se joga futebol nos últimos 15 minutos da partida. Aqui o problema não é de verdade desportiva, é a degradação de um espetáculo que é pago e que deve estar ao serviço de quem o presencia. Nada justifica a persistência da palhaçada do antijogo e há formas de a combater. Dois exemplos, que podiam ser ponderados.
Pôr fim às paragens para assistir jogadores indispostos. Tal como no râguebi, a equipa médica devia entrar em campo e ser encarada como participando no jogo. Nos últimos cinco minutos das partidas, o cronómetro devia parar sempre que a bola não estivesse em movimento, à imagem do que acontece em muitos desportos de pavilhão. Não são soluções miríficas, mas ajudariam a contrariar os incentivos perversos que hoje existem para que o antijogo compense.
publicado no Record de 6 de dezembro
terça-feira, 29 de novembro de 2016
Os números de Vitória
Os números não revelam tudo, mas tendem a ser uma aproximação à realidade. Note-se nos de Rui Vitória ao comando do Benfica. Cumpridos 70 jogos na "cadeira de sonho", Vitória tem 77% de vitórias. Só é ultrapassado pelos registos, já distantes, de Béla Guttmann e Fernando Riera e está empatado com o mítico Cosme Damião, Artur Jorge no Porto e Szabo no Sporting. Neste século, só Mourinho é que se aproxima com 51 vitórias nos primeiros 70 jogos pelo Porto, que comparam com as 54 do atual técnico do Benfica. Se a comparação nacional impressiona, que dizer da europeia? Em 2016, Rui Vitória é o segundo técnico com melhor registo de vitórias, só ultrapassado por Luís Enrique no Barcelona.
Claro está que o treinador não é o único e, eventualmente, nem sequer o principal responsável pelos sucessos do Benfica dos últimos tempos. Estabilidade nas opções estratégicas do clube, uma política de contratações com sentido e – fundamental – com um horizonte de médio prazo, facilitam a vida a qualquer treinador. Parafraseando a máxima do saudoso "velho capitão", no Benfica de hoje, qualquer treinador se arrisca a ser campeão. Mas ajuda – e muito – ter um técnico que não se coloca acima da estratégia do clube, que não descarta responsabilidades quando a equipa falha e que gere com bom senso os sempre difíceis equilíbrios do balneário.
Talvez tudo isto ajude a explicar outros números que impressionam no Benfica de 2016/17. Com cinco partidas disputadas – e ainda sem clássicos –, a Luz tem uma média de assistências acima dos 55 mil espetadores, consolidando a tendência de crescimento das temporadas anteriores.
publicado no Record de 29 de novembro
sexta-feira, 25 de novembro de 2016
A alegria do povo
Desde sábado que ando com uma sensação estranha: tenho a impressão de que, para onde quer que me vire, me arrisco a ver o Guedes e o Nelsinho a passarem por mim a correr, imparáveis, a alta velocidade. Digo-o agora em público sem reserva, pois, em privado, já partilhei a sensação com um par de amigos que me confidenciaram sentir o mesmo.
Não sou o único, mas isso não me impede de saber que o primeiro passo para ultrapassarmos um estado de perturbação psicológica é reconhecer que alguma coisa está errada. Tenho feito um esforço nesse sentido e consultei os melhores especialistas. O António Tadeia diagnostica a facilidade do Benfica em "meter as mudanças de velocidade à entrada dos últimos 30 metros". O Pedro Bouças, que dá consultas ao grande público no Lateral Esquerdo, afiança que o segredo do Guedes está na mobilidade em aceleração que garante opções de passe e nos desequilíbrios em condução. Já o Nelsinho é um caso à parte de critério e dinâmica: notável na forma como vai superando situações de inferioridade em espaços curtos. Até o Carlos Daniel, pese embora o seu espírito hipercrítico, me confidenciou: vejo muita evolução. Os dois mais competentes, o Nelsinho a defender melhor e a temporizar com propósito e o Guedes muito bem por dentro, com espaço para explodir e cada vez melhor na decisão.
Pois eu, que sempre que o tema é o Benfica sou estruturalmente dado a devaneios pueris, limito-me a constatar o óbvio: temos de aproveitar os poucos meses em que o Guedes e o Nelsinho vão estar por cá, vestidos com as camisolas berrantes, a encher-nos de alegria.
publicado no Record de 22 de novembro
quinta-feira, 17 de novembro de 2016
Todos os homens
You thought that it could never happen
to all the people that you became,
your body lost in legend, the beast so very tame.
But here, right here,
between the birthmark and the stain,
between the ocean and your open vein,
between the snowman and the rain,
once again, once again,
love calls you by your name.
(...)
A voz foi ficando mais grave
e trémula, enquanto adquiria ainda mais drama; o corpo foi-se curvando,
mantendo elegância, e aproximando-se da imagem do “pequeno judeu que escreveu a
Bíblia”. Mas, em Leonard Cohen, o tempo nunca fez sentido. Cohen nunca foi um
homem da sua época, nem de nenhuma época. Na verdade, nunca foi jovem. Nasceu
já com uma maturidade absoluta, vestido com um fato de corte impecável e chegou
ao mundo da música tarde (para conquistar todas as mulheres?), quando já havia
ganho reconhecimento como poeta e escritor. Se bem que se tenha aproximado dos
movimentos folk e da poesia beat,
dificilmente se pode dizer que pertencia a um grupo ou fazia parte de uma
tendência.
Mas se o tempo não ajuda a
compreender o legado de Cohen, a sua biografia ajuda a revelar a sua obra. O
órfão que se torna aos nove anos o único homem de uma casa de mulheres; o judeu
oriundo de uma das famílias mais influentes da comunidade judaica do Canadá; o
pré-adolescente que aprende hipnotismo para despir a empregada; o estudante que
se envolve nos círculos intelectuais de Montreal; mas também o jovem escritor
que parte em busca de sucesso literário em Nova Iorque e Londres; o músico que
tem um sucesso súbito e que vive uma vida boémia, repleta de anfetaminas,
álcool e muitas mulheres; para logo depois buscar o recolhimento pleno de
brancura, em Hydra, nos braços de Marianne; o homem maduro, de uma religiosidade
profunda, que se recolhe num mosteiro budista, levando um quotidiano de um
ascetismo radical, mas que nunca abandonou o judaísmo; o amante convicto de um
rol infindável de musas; o Pai dedicado de Adam e Lorca. Cohen foi todos os
homens e esteve em todas as suas canções.
É certo que entre os 14
álbuns que lançou há elementos de mudança. Ao princípio, a voz era menos
espessa e a guitarra bem mais presente (que conta a lenda aprendeu a dedilhar
com um espanhol radicado no Canadá, amante de Lorca, e que se suicidou após
algumas lições com o jovem Leonard), depois da trilogia inicial, o ambiente foi
ficando mais denso (com Songs of Love and
Hate), para mais tarde enveredar por uma “parede de som”, numa trip
alucinada, em colaboração com Phil Spector (Death
of a Ladies Man). Na passagem dos anos 70 para os 80, perdeu algum fulgor e
reconhecimento público (Various Positions
começou por não ter distribuição nos EUA) para começar uma nova fase a partir
de I’m Your Man, de voz mais grave e
acompanhado pelos teclados roufenhos e de gosto duvidoso que se tornariam
imagem de marca. Pelo caminho, a compilação de reinterpretações, I’m Your Fan, primeiro, e um desfalque financeiro,
depois, que o devolveu às tournées e tornou possível uma notável trilogia final
(Old Ideas; Popular Problems e You Want
It Darker), deram-lhe o reconhecimento de um público mais alargado.
Há, contudo, no essencial, elementos de
continuidade entre Songs of Leonard Cohen
e o recente You Want It Darker. A
toada melancólica e um horizonte sombrio, as melodias envolventes, variações
incessantes do mesmo canto lento, mas, acima de tudo, temáticas persistentes: a
tentativa de lidar com a beleza absoluta através da palavra (o que é próprio
dos “oprimidos pelas figuras de beleza”), o confronto com o juízo final (“I'm ready, my
lord”, canta a abrir You Want it Darker), um
ensimesmamento reflexivo que coexiste com uma sexualidade exuberante e uma
celebração do amor, transformada em nostalgia sobre as paixões passadas. Sobre tudo pairou sempre um espectro apocalíptico (“I’ve seen the future and it’s murder”),
só superável pelo diálogo com Deus. Cohen pareceu sempre ter sido
deixado sem escolha – para além de conferir um sentido ao amor, à sexualidade e
à religiosidade através do “dom de uma voz dourada”. Stranger Song, tema marcante do álbum de estreia, sugere o mesmo
descontentamento e busca de redenção (“It's
true that all the men you knew were dealers/who said they were through with
dealing/Every time you gave them shelter”) que Treaty, canção que, sintomaticamente, encerra o derradeiro disco (“We sold
ourselves for love but now we're free/I'm sorry for the ghost I made you
be/Only one of us was real and that was me”).
Nos dois casos, a paixão é um alimento para a insatisfação do espírito.
É conhecida a conversa
entre Dylan e Cohen, onde o agora prémio Nobel terá dito, com convicção:
“Leonard, tu és o número 1; mas eu sou o número zero”. Talvez seja uma forma de
descrever a diferença. Dylan é um fenómeno cultural, um reinventor incessante
do cânone. Cohen é a versão mais perfeita do cânone. A forma superior como
ligou poesia com música foi seguida por muitos, mas está longe de ter sido
alcançada.
Com a mentira m'enganas
Desde George Orwell que sabemos que quem controla o passado, controla o futuro e quem controla o presente, controla o passado. É assim que deve ser entendida a tentativa de Bruno de Carvalho de reescrever a história dos títulos de campeão nacional. Não fora a iniciativa tão tosca e desconforme com os factos, Bruno de Carvalho arriscava-se mesmo a ser o presidente do Sporting a conquistar mais títulos num só mandato – para já, quatro campeonatos em três anos. Seria obra, não fora ser na secretaria.
Regressemos ao estimulante exercício de revisionismo. O argumento do presidente do Sporting parte do pressuposto de que o Campeonato de Portugal disputado até 1938, por eliminatórias, corresponde ao Campeonato Nacional. Podia fazer sentido, não fora a hipótese não ser acompanhada por ninguém, nem sequer pelo autor do ‘Almanaque do Leão’, Rui Miguel Tovar. Aliás, a própria Federação, aquando da alteração das competições, logo em 1938, teve o cuidado de consagrar a doutrina, para memória futura, "Por virtude da reforma a que se procedeu no Estatuto e Regulamentos da Federação, os Campeonatos das Ligas e de Portugal passaram a designar-se, respetivamente, Campeonatos Nacionais e Taça de Portugal".
Talvez a explicação para este ímpeto de conquistas esteja na história recente: desde que Bruno de Carvalho foi eleito, há uma regularidade estatística – o Benfica sagrou-se sempre campeão. Não sei se há correlação entre os dois eventos, em todo o caso, tendo em conta que o presidente do Sporting se alimenta a antibenfiquismo, talvez o assunto o preocupe.
publicado no Record de 14 de novembro
Regressemos ao estimulante exercício de revisionismo. O argumento do presidente do Sporting parte do pressuposto de que o Campeonato de Portugal disputado até 1938, por eliminatórias, corresponde ao Campeonato Nacional. Podia fazer sentido, não fora a hipótese não ser acompanhada por ninguém, nem sequer pelo autor do ‘Almanaque do Leão’, Rui Miguel Tovar. Aliás, a própria Federação, aquando da alteração das competições, logo em 1938, teve o cuidado de consagrar a doutrina, para memória futura, "Por virtude da reforma a que se procedeu no Estatuto e Regulamentos da Federação, os Campeonatos das Ligas e de Portugal passaram a designar-se, respetivamente, Campeonatos Nacionais e Taça de Portugal".
Talvez a explicação para este ímpeto de conquistas esteja na história recente: desde que Bruno de Carvalho foi eleito, há uma regularidade estatística – o Benfica sagrou-se sempre campeão. Não sei se há correlação entre os dois eventos, em todo o caso, tendo em conta que o presidente do Sporting se alimenta a antibenfiquismo, talvez o assunto o preocupe.
publicado no Record de 14 de novembro
Bafejados pela sorte?
No domingo, nem o Porto foi tão superior como se quis fazer crer, nem o Benfica tão afortunado como sugere um empate alcançado nos descontos. Olhemos para os números: vantagem do Porto nos remates (17/12) e nos remates enquadrados (8/2), mas, em todos os outros indicadores, houve grande proximidade entre as equipas. Equilíbrio total na posse de bola, ligeira vantagem nas oportunidades de golo criadas para o Porto (13/11) e na eficácia do passe (81%/77%). Apesar de tudo, o Benfica venceu mais duelos (54/51) e teve mais cantos a favor (9/6).
Claro está que os números não dizem tudo e para quem viu o jogo não sobram dúvidas: Nuno Espírito Santo preparou melhor a estratégia com que abordou a partida e remeteu o Benfica para uma toada defensiva, que Rui Vitória devia ter contrariado bem antes de sofrer o golo. Mais, ficou a sensação de que, em partidas a doer e com muitas baixas, o Benfica deixa de poder depender tanto do talento individual e pressente-se alguma falta de critério coletivo. Continua aí a principal debilidade estrutural deste Benfica.
Mas enquanto Rui Vitória foi superior na forma como mexeu na equipa, Espírito Santo deu demasiados sinais defensivos nas substituições, oferecendo ao Benfica um controlo do meio-campo que tinha perdido completamente na primeira parte.
No fim, o empate e a confirmação de que a sorte desempenha um papel importante no futebol: não fora a rosca de Herrera e a falha de marcação do Porto num canto aos 92 minutos, estaríamos a falar de uma partida diferente. Contudo, por paradoxal que possa parecer, nem sequer a sorte é fruto do acaso.
publicado no Record de 7 de Novembro
quarta-feira, 2 de novembro de 2016
Contra o entusiasmo
Há um ano, por esta altura, o Benfica era
uma equipa destroçada. Sem fio de jogo, a viver uma transição traumática de
treinadores e a acumular maus resultados. Antes da deslocação a Braga, a
questão que se colocava era se fazia sentido começar a preparar a nova
temporada, mudando de treinador e lançando novos jogadores ou, pelo contrário,
teimar numa aposta que parecia falhada. Entretanto, o Sporting liderava o
campeonato com uma vantagem que era sensivelmente a mesma que o Benfica tem agora.
Sabemos bem como terminou o campeonato.
E sabemos também que pequenos fatores
fizeram uma grande diferença: a entrada de Renato na equipa, que ligou os
setores e conferiu dinâmica ao futebol do Benfica, e uma dupla atacante (Jonas
e Mitroglou) que começou a marcar golos em catadupa. Claro está que, não fora o
excesso de confiança demonstrado pelo Sporting, a vantagem amealhada pelos de
Alvalade não teria sido delapidada.
É essa a principal lição que o Benfica
agora deve recordar. Não há lideranças confortáveis e nem os adversários são
tão frágeis como sugerem os resultados deste fim-de-semana, nem
futebolisticamente o Benfica é tão superior como indicia a tabela
classificativa. O Porto, por estar liberto da tensão entre Benfica e Sporting,
tem a vantagem de correr por fora e tem este ano mais soluções em posições
chave; já o Sporting tem um excelente treinador, com um plantel desenhado à sua
medida e que é bem mais completo do que o do ano passado. É por isso que,
agora, contrariar o entusiasmo natural que se sente na família benfiquista é
tão importante como ultrapassar as fragilidades futebolísticas que ainda
existem.
quarta-feira, 26 de outubro de 2016
Saiu quem?
A certa altura do play-off deste domingo, com a sagacidade
que o caracteriza, Augusto Inácio questionava repetidamente, “saiu quem do
Benfica?”. A pergunta, está visto, visava demonstrar que o Sporting tinha sido
particularmente afetado no defeso, com a perda de João Mário e de Slimani. É um
facto. Mas talvez valha a pena ajudar o ex-diretor de relações internacionais
do Sporting.
Dos cinco jogadores
mais importantes da equipa que venceu o tricampeonato, o Benfica perdeu Gaitán
e Renato Sanches e Jonas e Jardel ainda não jogaram, envolvidos que estão nessa
praga clínica de proporções bíblicas que afeta o Seixal. Se juntarmos as lesões
à vez de Ederson e Júlio César e os escassos 70 minutos de Rafa (o reforço mais
sonante), de facto, é caso para dizer que, tirando estes, ninguém saiu do
Benfica. No fim, o jogador mais propenso a lesões, Fejsa, é o único
sobrevivente do cinco que liderou o Benfica rumo ao 35.
São, na verdade,
muitas “saídas”. E se somarmos a saída do cérebro há um ano e o facto de termos
uma equipa à deriva, que, é-nos dito, nem sequer treinador tem, a dinâmica de
vitória do Benfica é miraculosa.
Ou talvez não. Apesar
de tantas saídas, há explicações para o Benfica continuar a vencer. É que
“saem” jogadores, mas há coisas que se mantêm: o compromisso competitivo; a
intensidade com que se encaram os jogos; a concentração exclusivamente no
próprio grupo; a humildade com que se enfrenta os adversários. Tudo qualidades
mais difíceis de garantir do que uma mão-cheia de reforços comprados com pouco
critério.
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