"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

padaoesilva@gmail.com

terça-feira, 28 de abril de 2015

Um nome: soberba


"O que há num simples nome?", questionava-se Julieta, no drama de Shakespeare. A pergunta é-nos devolvida todos os dias e regressou em força na ressaca do Benfica-Porto. Custa a crer, mas, de acordo com os relatos, é mesmo verdade: a altercação entre Jesus e, vamos lá ter cuidado a grafar, Lo-pe-te-gui não se deveu ao calor da luta, mas ao basco ter ficado enxofrado com as constantes trocas do seu apelido pelo treinador do Benfica.

A coisa parece ter contornos de drama shakespeariano, e pode bem ter. Diria que estamos perante o derradeiro sinal da soberba com que o técnico do Porto encarou a sua passagem por Portugal, e que o faz acumular falhanços atrás de falhanços, aproximando-o da queda.

Podia encher esta coluna com "variações Jesus" de nomes e apelidos. A tarefa era fácil. Das últimas semanas, e fazendo um exercício de memória, recordo-me do "Wiliams", do "Ola Jonas", do Jonathan rebatizado de "Xavier" e, claro está, do magnífico "Lotopegui" (a coisa é de tal forma, que hoje tenho dificuldade em acertar com o nome do basco).

Jorge Jesus pode ter muitos defeitos, mas qualquer pessoa com um módico de sensatez percebe que as trocas de nomes, se nos dizem alguma coisa sobre o técnico do Benfica, é que estamos perante alguém autêntico, que não procura ser quem não é. Não por acaso, numa atitude tão pouco comum em Portugal, Jesus não perde uma oportunidade de nos recordar as suas origens e fá-lo com honra. Só lhe fica bem.

Que Lopetegui não tenha percebido isso e tenha tomado por gozo o que está, aliás, mais próximo da autoironia, é um sintoma da mesma atitude que o levou a ficar convencido que teria uma tarefa fácil no Porto e a desvalorizar o nosso campeonato, as competências tácticas dos treinadores portugueses e a organização defensiva a que se agarram os clubes pequenos. Os resultados da soberba estão à vista.

publicado hoje no Record

O sprint final


"É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma". Mesmo que muito glosado, este velho adágio, que o escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa atribuiu a Don Fabrizio, príncipe de Salina, não perdeu acuidade. Perante os ventos da mudança, a inteligência do “Leopardo” permitia-lhe focar-se no essencial, preservando a sua forma de vida.
Talvez seja também esta a melhor metáfora para o Benfica-Porto de ontem: foi necessário que alguma coisa mudasse (mais uma jornada de campeonato, com o Benfica a manter uma distância de segurança face ao Porto), para que tudo ficasse na mesma (o título será decidido num sprint final, após uma longa maratona). Já o Benfica teve a inteligência de focar-se no essencial – não perder pontos para o rival.
De resto, o jogo foi um reflexo das debilidades e das forças das duas melhores equipas portuguesas. Enquanto o Porto tem uma ótimo plantel, com muitas soluções, mas um jogo coletivo com fragilidades e perturbado pelas alterações sistemáticas no onze titular; o Benfica vive de uma ideia de jogo consolidada ao longo de 6 temporadas com Jorge Jesus, em que a organização coletiva, em particular nos momentos defensivos, torna possível que até o “Manel” brilhe (por exemplo, foi notável a exibição de Jardel, transformado num verdadeiro Garay).
Como acontece em muitos jogos decisivos, o que a partida teve em intensidade, faltou-lhe em qualidade nos momentos ofensivos. Nem Júlio César, nem Helton fizeram defesas dignas de nota e quer Benfica, quer Porto estiveram bem melhor a defender do que a atacar.
Numa altura em que o campeonato se aproxima da reta da meta, o Benfica leva vantagem no confronto direto, parece estar melhor fisicamente e reforçou a sua confiança anímica. Com o embalo que leva, só um enorme percalço permitirá que o Benfica se deixe ultrapassar no sprint final.

análise ao Benfica-Porto publicada no Record de segunda-feira.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Veedon Fleece



no último par de anos, de cada vez que entrei numa discoteca procurei o Veedon Fleece do Van Morrison. já havia desesperado e suspeitava que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por comprar uma cópia em segunda-mão (que ainda assim se conseguem encontrar online, a preços exorbitantes). o que se passa com o "fundo" de catálogo do Van Morrison é, aliás, inexplicável. depois de umas reedições relativamente cuidadas de Astral Weeks e Moondance, não nos foi oferecido mais nada (e nos serviços de streaming também pouco há - não há, claro está, o Veedon Fleece, que para ser escutado requer busca no youtube). Ora o Veedon Fleece disputa, com inteira justiça, o título de melhor disco do irlandês com o Astral Weeks. o álbum, editado em 1974 e gravado nos Estados Unidos, tem aquela combinação singular de R'n'B com um registo pastoral, a devolver-nos à Irlanda que Van Morrison havia abandonado, mas à qual regressaria em breve e, acima de tudo, um conjunto de canções de uma melancolia catártica, improváveis na voz singular de um jovem que ainda não tinha 30 anos.
tudo isto porque este fim-de-semana o Veedon Fleece veio ter comigo, oferecido com uma generosidade que sei reconhecer, mas não saberei retribuir,  por um amigo que tinha uma cópia.
agora que escuto o álbum em loop (que é a única forma correta de se escutarem os discos), sei que, entre milhares de discos que acumulo, este ocupa, por mérito próprio, um lugar de destaque, mas guarda também a memória da generosidade do João.

e aqui uma versão ao vivo de Bulbs, de 1974, mas com arranjos bem distantes dos do álbum




quarta-feira, 22 de abril de 2015

Regressar aos clássicos




Uma vergonha


Não passa uma semana sem que se ouçam queixas sobre o ambiente desolador no qual se disputa a maior parte das partidas da 1.ª Liga. Estádios às moscas, com assistências que ajudam a nivelar por baixo o campeonato. Pois então experimentem ir a um jogo, fora de um estádio dos três grandes, e talvez se perceba melhor a razão deste cenário deprimente. Não e não falo da falta de qualidade de muitos jogos.

Este fim-de-semana, fiz parte da maré vermelha que invadiu a superior norte do Restelo e posso testemunhar a vergonha que foram as condições de acesso e no interior do estádio.

Há uma semana que era previsível uma enchente de benfiquistas, em particular naquela zona do estádio. Pouco importa: a entrada foi preparada em termos completamente desadequados. Duas horas antes do início da partida, já se formava uma longa fila de acesso, que ninguém cuidou de organizar. O acesso decorria a passo de caracol, por uma única porta. Com o aproximar da hora do jogo, tudo se tornou mais caótico, para culminar num enorme aperto na estreita porta. A crer no ritmo de entrada de adeptos após o apito do árbitro, a entrada deve ter sido flexibilizada. Que 25 anos depois de Hillsborough coisas destas se passem num estádio europeu, é difícil de compreender. Esqueçam a ideia que o futebol deve também ser um espetáculo para a família, levar crianças para ali, nem pensar. Lá dentro, as casas de banho não funcionavam e as cadeiras, ressequidas ao sol, partiam-se ao primeiro encosto.

Não sei de quem é a culpa, mas minha e dos outros milhares de adeptos que pagaram bilhete não é certamente. É preciso ter muita vontade de acompanhar um jogo do clube do coração para pagar para assistir a um espetáculo naquelas condições. No fim, fica-se com a sensação de que se está à espera que uma tragédia ocorra para que depois se gere um movimento de comoção nacional, seguido de apuramento de responsabilidades.


publicado no Record de ontem

P.S.
o João Gonçalves escreve sobre o mesmo tema aqui.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Caos Criativo



O saxofonista Ornette Coleman disse um dia que o "jazz é a única música em que a mesma nota pode ser tocada noite após noite, mas de forma diferente de cada vez". Lembrei-me do criador do free-jazz quando este fim-de-semana assistia, pela enésima vez, ao carrossel atacante do Benfica. E a questão é mesmo a repetição do "carrossel atacante".

Há quatro anos que se usa a expressão para caracterizar a forma como o Benfica ataca, envolvendo um grande número de jogadores em movimentações imprevisíveis. Ora parece-me bem que estamos perante um problema de denominação: se as movimentações são imprevisíveis não podemos falar de um carrossel – por natureza uma formação em movimento circular e sem variação.

Quando, depois de 20 minutos de jogo, a Académica em asfixia implorava por uma pausa para respirar, ficou, para mim, claro que a gramática à qual obedece o Benfica não é a de um carrossel, aproxima-se mais do caos criativo, próprio do jazz. Reparem, há um equilíbrio colectivo, mas que está ao serviço dos desequilíbrios individuais dos solistas e que radica num método muito trabalhado, mas quase invisível.

A agressividade com que o Glorioso encara os jogos não se aproxima do movimento repetitivo do carrossel. Pelo contrário, o objectivo é sempre alterar as convenções táticas: como sugeria Coleman, tocar a mesma nota, mas fazê-lo sempre de forma diferente. Umas vezes, com Lima a cair nas alas, outras com Gaitán a fletir para o meio, outras com Sálvio na zona de finalização e, claro está, com Jonas a fazer tudo bem em todo o lado.

Tal como no jazz, mesmo nas suas variações mais radicais, esta criatividade pressupõe uma organização que é tão mais complexa e eficaz, quanto mais invisível e trabalhada. Afinal, nada é tão exigente como uma boa improvisação.

Resta agora superar um desafio: exibir este caos criativo em todos os palcos e não apenas na Luz.

publicado no Record de terça-feira

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Dylanesca

há 8 anos, com 17 anos, a Laura Marling estreava-se no Jools Holland. Notava-se a idade (ou talvez não).



Ontem, do esplendor dos seus 25 anos, foi lá fazer esta exibição de maturidade.



tenho a certeza que o Bob Dylan, onde quer que esteja, deve gostar disto.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Um dia na vida

cumprem-se hoje 45 anos desde o dia em que o mundo ficou a saber que os Beatles tinham acabado.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

A Maré Vermelha


No incontornável "Red Pass" desse benfiquista emérito que é o João Gonçalves, encontrei um SMS lapidar do Ricardo Araújo Pereira, ainda a propósito dos tímidos assobios que se fizeram sentir na parte final do Benfica-Nacional: "Jorge Jesus conseguiu trazer de volta o Benfica da minha infância: a equipa faz uma grande exibição e é assobiada. O Benfica voltou."

Nos últimos anos, perdemos campeonatos de forma inglória, mas, mesmo nas derrotas dolorosas, abandonámos a atitude condescendente de quem encontra algum conforto no "quase". Nisso, voltou o Benfica com o qual cresci: uma equipa viciada em vitórias, para a qual tudo o que não fosse esmagar os adversários sabia a pouco. Mas também um Benfica que não tolerava exibições cínicas e resultadistas. No Benfica dos meus anos formativos, não bastava vencer, era preciso fazê-lo, para utilizar um neologismo, com "nota artística".


Bem sei que o Jorge Jesus é um casmurro com poucos paralelos, que continua a não conseguir montar uma equipa capaz de controlar um jogo com bola, ou que insiste em não fazer a vontade ao adepto de bancada (digam lá, este não era o jogo ideal para o Jonathan Rodríguez entrar aos 70 minutos? Ou para o Gonçalo Guedes aproveitar para brilhar sem pressão?), mas, nos últimos anos de Benfica, há um antes e depois de Jesus. 

O Gaitán resumiu aliás de forma exemplar o que se passa, quando, no final do jogo, afirmou que "o Benfica pratica um bom futebol e as pessoas divertem-se. Isso é o mais importante". Diria que os jogadores divertem-se e divertem-nos, o que explica o regresso da maré vermelha e, claro está, dos assobios. Os adeptos habituaram-se a vencer de forma convincente; agora, os jogadores têm de se habituar à exigência de quem já não tolera jogos amorfos. O Benfica da minha infância voltou.

publicado no Record de ontem.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Oh Ah Cantona




Quem tem hoje 40 anos recorda-se onde estava quando viu as imagens do muro de Berlim a cair ou da tragédia das Twin Towers e, muito provavelmente, sabe onde primeiro assistiu ao E.T. Cada geração tem um par de imagens icónicas que ajudam a construir uma memória coletiva que se reproduz ao longo do tempo. Há coisas que não se esquecem e o futebol não é exceção.

É certo que há golos memoráveis e jogadas que somos capazes de relatar de cabeça, mas o futebol perdura não apenas como memória afetiva do jogo jogado. Sei onde estava quando aconteceram coisas que mudaram o mundo à minha volta. Da mesma forma que não me esquecerei do lugar e do momento em que vi Cantona, depois de ser expulso contra o Crystal Palace, a avançar para a bancada e a lançar com precisão um golpe de Kung-Fu num adepto que o insultara.

Falo disto porque se cumpriram 20 anos desse gesto grandiloquente, que mudou o futebol inglês, enquanto fez de um jogador notável, uma figura icónica.

Cantona é lembrado pelo seu histórico de vitórias, por ter devolvido o Man. Utd. a um lugar hegemónico e, até, por se ter estreado pelos red devils contra o Glorioso, num jogo de homenagem ao Eusébio. Há também quem sublinhe que foi um dos responsáveis pela alteração do estilo de jogo inglês, continentalizando-o, numa altura em que a Premier League se reinventava, tornando-se o fenómeno global que é hoje. Há um antes e depois de Cantona no futebol inglês.


Pode tudo ser verdade. Mas, o que recordo desse instante definidor, não é a imprudência do gesto, o ato de pura indisciplina, é a prova de que o futebol, na forma como tenta domesticar todos os excessos, canalizando-os para 90 minutos de regras e táticas, exige, para se manter vivo, momentos de respiração pura. Tirando a cabeçada de Zidane na final do Mundial, é difícil recordar-me de outro momento tão icónico no futebol das últimas duas décadas.

















publicado no Record de terça-feira.

Is it worth it?




3 minutos, apresentados como "escapist light entertainment", que voam sem que se dê pelo tempo passar