quarta-feira, 7 de dezembro de 2011
Parabéns, Dr. Mário Soares
“A intuição é uma disciplina que não foi à escola”, disse um dia o escritor brasileiro Millôr Fernandes. A frase não pode deixar de ecoar enquanto se lê a autobiografia que Mário Soares lançou esta semana, “Um Político Assume-se”, que tive o privilégio de apresentar. Nas quinhentas páginas, que cobrem o longo século XX e que chegam até aos nossos dias, apesar de todas as alterações nas circunstâncias, há um aspecto muito constante: um protagonista que se moveu frequentemente por intuições.
Podemos todos já ter discordado de Mário Soares em vários momentos, mas todos lhe reconhecemos uma intuição política rara, uma espécie de ‘astúcia da razão’ que não se aprende. Este elemento intuitivo choca com a ideia hoje prevalecente de que a ação política mais eficaz é baseada na racionalidade informada – através da leitura de sondagens e de ‘focus groups’. Ora, se pensarmos bem, nas grandes opções – quando afrontou o Estado Novo e rompeu com a unidade da oposição; quando defendeu a opção europeia e a democracia liberal contra a deriva totalitária; e, mais recentemente, quando criticou a colonização ideológica da social-democracia – Mário Soares arriscou e teve as intuições certas.
Esta propensão ao risco serve, aliás, para contrariar uma ideia feita em relação a Soares. Ao contrário do que é muitas vezes sugerido, não foi um político que, ao longo da sua vida, interpretou o sentimento da maioria e o procurou representar. O que se passou foi quase sempre o oposto. Não estamos perante alguém que se limitou a gerir silêncios e expectativas, aguardando que as suas posições se tornassem maioritárias. Pelo contrário, o percurso de Soares revela uma interpretação da ação política ao arrepio da visão calculista. Os exemplos em que provocou rupturas e contrariou o ambiente político da época são muitos. Foi essa atitude que lhe permitiu transformar ideias incertas e minoritárias em posições maioritárias e até hegemónicas.
Não por acaso, as suas tomadas de posição causaram muitas vezes incompreensão, mesmo no seu espaço político. Com o passar do tempo, acabaram por se revelar certeiras. Steve Jobs, que tinha uma conhecida desconfiança dos estudos de mercado, disse que “as pessoas não sabem o que querem até tu lhes mostrares”. A asserção, aplicada à política, não poderia ser mais verdadeira. Até porque é essa a função dos líderes: procurar mudar as sondagens, em lugar de as cavalgar, através de uma visão do que as pessoas querem, mesmo antes de estas estarem conscientes das suas ambições políticas.
Há, hoje, uma manifesta impaciência face aos políticos. Julgo que tal não resulta, no essencial, de uma ausência de consciência colectiva dos desafios que enfrentamos. Resulta, em importante medida, da ausência de líderes que sigam as intuições, que arrisquem e se assumam, para além das circunstâncias. Podemos ter discordado de Mário Soares e do seu percurso, mas não podemos negar a notável atualidade da forma como vê a atividade política.
artigo publicado no Expresso do passado Sábado.