"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

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quarta-feira, 4 de junho de 2014

Os matraquilhos




Passa o tempo e há hábitos que persistem. Escrevinhar equipas do Glorioso em pedaços de papel: o onze da semana; o onze ideal; a equipa de sonho. Qualquer pretexto serve. Levo anos disto. Cadernos da escola repletos, mensagens trocadas com amigos. Jogadores alinhados, com setas a indicar as movimentações – o médio direito fecha por dentro, os avançados defendem horizontalmente, o extremo esquerdo procura zonas exteriores. A vida pode bem ser a continuação do futebol por outros meios.

Se assim é, o que nos resta fazer quando não estamos a ver futebol? Escrevinhar equipas de sonho e ... jogar matraquilhos. Aproximações possíveis ao prolongamento do jogo, mas também superações nostálgicas e materiais da ausência de futebol jogado.

Num notável filme de animação (Os matraquilhos), o realizador argentino Juan José Campanella, vencedor do Óscar para melhor filme estrangeiro com “O segredos dos seus olhos”, adepto do Racing Club, concedeu finalmente vida aos rapazes de ferro, libertando-os das amarras do campo fechado.

A metáfora é exata e percorre o caminho iniciado por um adolescente galego, Alejandro ‘Finisterre’, em plena Guerra Civil espanhola. Ferido e hospitalizado, imaginou uma forma de tornar possível continuar a jogar futebol, mesmo não podendo. Assim nasceram os matraquilhos como os conhecemos: jogadores de ferro (e não o sucedâneo de plástico rígido que impera em muitos países), campos que com o tempo ganham lastro pegajoso e bolas cheias de lanhos, conquistados à custa de ruidosos ressaltos.

A palavra a Amadeu, protagonista do filme, um miúdo com um talento sem paralelo para jogar matrecos. Num momento em que todos os falhanços da sua vida parecem convergir e rodeado de jogadores de matrecos que entretanto ganharam vida, confessa resignado – “desperdicei a vida a jogar matraquilhos”. Num daqueles volte-face só ao alcance dos filmes de animação, é-nos devolvida uma lição de vida: “vamos buscar os rapazes de ferro. Tudo o resto vai-e-vem”. Tal e qual. Afinal, “o futebol é lindo. Sabes como é: tudo pode acontecer”.
publicado ontem no Record