Era uma vez um burro, um
cão, uma gata e uma galinha que, passada a idade ativa, se haviam tornado redundantes.
Nas quintas onde serviam, o seu trabalho já não era útil. Na fábula dos irmãos
Grimm, “Os músicos de Bremen”, os animais revoltam-se contra os patrões e fazem-se
à estrada. Pelo caminho, enfrentam dificuldades, mas, com a música que cantam
juntos, são capazes de vencer as agruras do caminho e encontrar liberdade na
cidade.
Mais de um século passado do
texto original, Chico Buarque adaptou uma versão italiana para escrever o mais notável musical infantil em português, “Os Saltimbancos”. Para muitos dos que
nasceram na década de 70, as canções irresistíveis de “Os Saltimbancos”
devolvem-nos ecos inesquecíveis da infância. Mas, se para os irmãos Grimm a
luta dos animais simbolizava uma libertação dos resquícios do feudalismo que
persistiam no século XIX, para Chico a história era outra. Os animais eram
símbolos de várias classes sociais que se rebelavam contra a ditadura. Hoje,
podemos ler em “Os Saltimbancos” outras narrativas, mas persiste a tensão entre
os de “baixo” e os de “cima”. Entre os redundantes (os idosos que já não são
precisos ou os trabalhadores que vivem acima das suas possibilidades) e aqueles
que são sempre lestos a exigir sacrifícios aos outros mas muito eficazes a
viver imunes a essas mesmas exigências.
Podemos bem pensar em “Os
Saltimbancos” quando observamos as transformações políticas na Europa. Numa
daquelas ilusões ingénuas que alguns vão alimentando, criou-se uma grande
expectativa de que a eleição de Hollande em França implicaria uma alteração na
paisagem política europeia. Quando se percebeu que de França não viriam bons
ventos, as expectativas mudaram de paragem e a esperança foi colocada na ida
para o poder do SPD, na Alemanha. No entanto e como seria de esperar, a grande
coligação alemã continuará a percorrer o caminho míope de Merkel.
Que assim seja é compreensível.
Entre os interesses imediatos do seu
eleitorado e uma visão estrutural para a Europa, o SPD escolheu os seus
eleitores. O problema não são os alemães, mas os alemães que nos governam em
Portugal, abdicando de defender os nossos interesses.
Os casos são muitos,
mas é difícil encontrar um exemplo mais paradigmático do que aquele dado esta
semana pelo secretário de Estado – note-se bem – dos Assuntos Europeus. Numa
mistela de germanofilia com neo-conservadorismo, o governante foi à Grécia e
não lhe ocorreu nada melhor do que opor-se a uma coligação dos países do sul
para inverter a política europeia. Saiu de lá com o epíteto de “o alemão”.
Regressado, fez graçolas sobre o assunto nas redes sociais.
Numa das canções de
“Os Saltimbancos”, os animais cantam “junte um bico com dez unhas/quatro
patas, trinta dentes/E o valente dos valentes/Ainda vai-te respeitar/Todos
juntos somos fortes/Somos flecha e somos arco”.
Se há leitura a fazer das eleições francesas e alemãs é que dependemos de nós, pelo
que devíamos aprender a lição dos “músicos de Bremen”.
“Os Saltimbancos” é
um musical infantil que está em cena no Teatro Experimental de Cascais e que
deve ser visto por todos os adultos.
publicado no Expresso de 7 de Dezembro