A forma como avaliamos um jogador do nosso
clube é sempre uma projeção de nós próprios como adeptos. É isso que faz com
que queiramos jogadores que suem a camisola com a intensidade com que sofremos
pelas nossas cores. É tanto assim que os anos vão passando e continuamos a
alimentar ilusões infantis: podemos nunca ter tido qualidades técnicas, mas,
quando fechamos os olhos, vemo-nos a agarrar a bola para marcar o golo
decisivo, sob os aplausos do estádio. Quem sofre com futebol, sofre com o seu
clube e, nessa indistinção, exigimos dos jogadores o que nós daríamos se, por
fortuna, pudéssemos estar no seu lugar.
De quando em quando surge um jogador adepto
como nós, mas com o talento que ambicionámos ter. Um sofredor que tem a sorte
de poder sofrer no relvado, de camisola ao peito. Há jogadores profissionais
que honram a camisola; mas uma coisa é jogar com afinco, outra é jogar com
afinco com a camisola do clube do coração. Momentos há em que, numa espécie de
epifania, ao adepto se junta o empenho e o talento. É desta conjugação que
nascem os jogadores que nos fazem sonhar.
No futebol em que as equipas são cada vez
mais “seleções do resto do mundo”, o jogador-adepto é uma raridade. É essa
natureza rara que o torna precioso.
O Bernardo Silva é ainda um projeto de
jogador, que deve ser acarinhado e protegido. Mas é um jogador-adepto como, nós
benfiquistas, não víamos há muito. Não só a sua paixão pelo Glorioso é, em
tudo, igual à de quem se senta nas bancadas, como tem um virtuosismo como
aquele que idealizámos para nós, caso vestíssemos as camisolas vermelhas. Com o
Bernardo, a bola parece ter sido feita para o servir, colando-se-lhe aos pés
para ganhar um sentido que não vislumbrávamos. No meio da monotonia mecânica em
que se tornam os jogos, as suas jogadas são fragmentos poéticos que simplificam
tudo, revelando como o futebol pode ser fácil.
O Bernardo é a matéria de que são feitos,
hoje, os sonhos benfiquistas. Ora se o futebol não servir para alimentar
sonhos, serve exatamente para quê?
publicado no Record de ontem.