As primeiras mágoas são as
mais duras e ficam para a vida. Eu sei quando o meu mundo futebolístico
primeiro desabou: num verão quente de 82, quando o escrete de Telê Santana – um
compêndio de poesia – foi derrubado pelo cinismo italiano e, depois, ao ver, em
duas temporadas consecutivas, o Liverpool de Dalglish, Rush e Souness destratar
o Benfica na Luz (numa das noites com uma exibição trágica do grande Bento).
Se o tempo não cura as
feridas inaugurais, a maturidade ensina-nos a olhar de outra forma para as suas
causas. Hoje, o futebol romântico das equipas de Telê continua a ser a medida
de todas as equipas, mas não desdenho a organização racional das equipas
italianas do início dos 80. E aprendi a admirar o Liverpool que vi esmagar o Benfica.
Não é o facto de o Liverpool
ter sido o clube mais forte nos meus anos formativos como adepto de futebol que
fez a diferença. Mesmo durante duas décadas de declínio, não deixei de
vislumbrar na cultura reds a ideia
que faço de um clube perfeito: paixão incondicional; ambiente marcadamente
popular e um clube que pertence a todos.
Bill Shankly, escocês,
filho de mineiros, herói da classe operária e manager mítico do Liverpool, disse um dia que a “palavra
fantásticos tem sido usada muitas vezes, por isso tenho de inventar outra para
descrever com precisão os espectadores em Anfield. É mais do que fanatismo, é
uma religião. Para os muitos milhares que aqui vêm em adoração, Anfield não é
um campo de futebol, é uma espécie de santuário. Estas pessoas não são apenas
adeptos, são membros de uma família alargada”. Os cânticos arrepiantes entoados
desde o kop e acompanhados por todas
as bancadas continuam a ser sinal dessa unidade de propósitos.
As tragédias de
Heysel e Hillsborough deram uma intensidade dramática acrescida ao Liverpool,
mas puseram fim à senda vitoriosa. Foi por isso um ato de emocionante justiça
poética que, 25 anos passados sobre Hillsborough, o Liverpool tenha voltado a depender
de si próprio para ser campeão. Em Lisboa, celebrei a vitória contra o City
quase como se de um jogo do Glorioso se tratasse. Como o meu Benfica, o
Liverpool é o clube do povo. Só não é português.
publicado ontem no Record.