A euforia da vitória não seria possível se, à espreita, não
estivesse sempre uma derrota de contornos épicos. As conquistas do nosso Benfica
este ano não teriam o mesmo sabor sem a tragédia de Maio. Há, no entanto, algo
de assustador num desporto que consegue causar tantos estragos na derrota e
tanta emoção na vitória.
Lembrei-me disto quando, entre escalas de aviões, vi o
Liverpool-Chelsea no aeroporto de Frankfurt. Ao meu lado, um camarada sofredor,
adepto com “red pass” em Anfield, com uma viagem de trabalho que o impedia de
estar no estádio, dizia-me ao intervalo, antes de se dirigir para a porta de
embarque: “de todos os jogadores, isto tinha de acontecer com o Gerrard. Tenho
a certeza de que ele vai marcar na segunda parte”. Eu fiquei a torcer por ele.
Mas, no futebol, um espelho da vida em tons grandiloquentes, não há justiça
poética. O Liverpool perdeu.
O momento: meio campo defensivo, Gerrard tem a jogada
controlada, num instante de descontracção deixa passar a bola, ainda tenta
recuperar, escorrega, abrindo uma auto-estrada para Demba Ba marcar. O futebol
é, no essencial, um jogo colectivo, mas está cheio de tragédias individuais – o
super-capitão com paixão de adepto, que não escondeu as lágrimas após a vitória
contra o City, para logo juntar os companheiros, unindo-os num apelo
carismático, deitava tudo a perder.
Já no avião, regresso ao livro de Geoff Dyer, ‘Mas é bonito’,
um comovente tributo a algumas lendas marginais, fundadoras do jazz. Aí se
descreve a história de Bud Powell, pianista de intuição perfeita, mestre do
bebop, mas também génio desgraçado por uma vida de dependências. A certa
altura, Powell tenta voltar a tocar, mas é ultrapassado pela hesitação nas
notas, perde o equilíbrio e abandona o palco. Tudo se desmorona. Dyer escreve
que “era como ver um ginasta e ter como certas aquela agilidade e força até que
ele cometia um pequeno erro e caía no chão. Só aí é que te apercebias de que
fizera parecer banal o que era praticamente impossível. E de que, mais do que
os mortais perfeitos, é a queda que exprime a verdade, a essência do movimento;
é essa memória que guardas para sempre.”
É caso para dizer que, aconteça o que acontecer no fim da temporada, Gerrard não caminhará sozinho. A forma como caiu no domingo ficar-me-á na memória, da uma forma grandiosa que supera os seus feitos.
(versão não editada - e mais longa - do texto ontem publicado no Record)