"I hope the fences we mended
Fall down beneath their own weight"

John Darnielle

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quarta-feira, 30 de abril de 2014

Mas é trágico


 
A euforia da vitória não seria possível se, à espreita, não estivesse sempre uma derrota de contornos épicos. As conquistas do nosso Benfica este ano não teriam o mesmo sabor sem a tragédia de Maio. Há, no entanto, algo de assustador num desporto que consegue causar tantos estragos na derrota e tanta emoção na vitória.

Lembrei-me disto quando, entre escalas de aviões, vi o Liverpool-Chelsea no aeroporto de Frankfurt. Ao meu lado, um camarada sofredor, adepto com “red pass” em Anfield, com uma viagem de trabalho que o impedia de estar no estádio, dizia-me ao intervalo, antes de se dirigir para a porta de embarque: “de todos os jogadores, isto tinha de acontecer com o Gerrard. Tenho a certeza de que ele vai marcar na segunda parte”. Eu fiquei a torcer por ele. Mas, no futebol, um espelho da vida em tons grandiloquentes, não há justiça poética. O Liverpool perdeu.

O momento: meio campo defensivo, Gerrard tem a jogada controlada, num instante de descontracção deixa passar a bola, ainda tenta recuperar, escorrega, abrindo uma auto-estrada para Demba Ba marcar. O futebol é, no essencial, um jogo colectivo, mas está cheio de tragédias individuais – o super-capitão com paixão de adepto, que não escondeu as lágrimas após a vitória contra o City, para logo juntar os companheiros, unindo-os num apelo carismático, deitava tudo a perder.

Já no avião, regresso ao livro de Geoff Dyer, ‘Mas é bonito’, um comovente tributo a algumas lendas marginais, fundadoras do jazz. Aí se descreve a história de Bud Powell, pianista de intuição perfeita, mestre do bebop, mas também génio desgraçado por uma vida de dependências. A certa altura, Powell tenta voltar a tocar, mas é ultrapassado pela hesitação nas notas, perde o equilíbrio e abandona o palco. Tudo se desmorona. Dyer escreve que “era como ver um ginasta e ter como certas aquela agilidade e força até que ele cometia um pequeno erro e caía no chão. Só aí é que te apercebias de que fizera parecer banal o que era praticamente impossível. E de que, mais do que os mortais perfeitos, é a queda que exprime a verdade, a essência do movimento; é essa memória que guardas para sempre.”
        
            É caso para dizer que, aconteça o que acontecer no fim da temporada, Gerrard não caminhará sozinho. A forma como caiu no domingo ficar-me-á na memória, da uma forma grandiosa que supera os seus feitos.

(versão não editada - e mais longa - do texto ontem publicado no Record)