Escritor
notável, Nobel da Literatura, referência ética de uma Europa a colapsar e
guarda-redes de futebol no Racing de Argel. Albert Camus foi tudo isto e,
certamente por isso, disse um dia que “depois de muitos anos, nos quais vi
muitas coisas, o que sei de mais seguro sobre moralidade e os deveres do homem,
devo-o ao desporto e aprendi-o no Racing de Argel”. A citação surge amiúde e vive
de forma autónoma, contudo só recentemente apreendi o seu verdadeiro sentido.
Recorro
a Eduardo Galeano, que cita ainda Camus sobre futebol, que nos revela por sua
vez os ensinamentos dos anos de guarda-redes: “aprendi que a bola nunca vem ter
connosco por onde esperamos que venha. Isso ajudou-me muito na vida, sobretudo
nas grandes cidades, onde as pessoas não são, como se usa dizer, retas”.
Moralidades
à parte, o que Camus também identificou com precisão foi a magia singular do
jogo de futebol. Uma coreografia assente em regras, disciplina tática,
movimentos previsíveis, mas que acaba por ruir porque, por mais que procuremos
antecipar o que vai acontecer, “a bola nunca vem ter connosco por onde
esperamos que venha”.
Hoje
o futebol pode parecer uma exibição de organizações quase espartanas, com pouco
espaço para a afirmação individual. Nada de mais errado. O futebol persiste
grandioso apenas porque no meio da organização burocrática, do modelo de jogo
ensaiado, há sempre uma nesga de criatividade que leva a bola por caminhos
inesperados. Sem o rasgo taticamente irresponsável de um par de mágicos que vão
resistindo às amarras, o futebol poderia existir, mas não teria nada para nos
ensinar sobre moralidade.
publicado no Record de terça-feira.