O
Brexit torna evidente uma patologia
europeia aguda, cujos sintomas só não via quem não queria, ao mesmo tempo que
agudiza as causas da doença.
Durante
seis décadas, a construção europeia assentou em pressupostos lineares: a paz
traria prosperidade e a prosperidade reforçaria a paz e as democracias
liberais. A crise interrompeu este ciclo de otimismo e fez renascer velhos
fantasmas: a xenofobia, os egoísmos de base nacional, o desemprego estrutural e
a anemia económica. Estas tendências enraizaram-se e traduziram-se em clivagens
sociais profundas, com uma natureza nova. Onde antes existia uma “guerra de
classes”, ainda assim traduzível pelo sistema partidário, instaurou-se uma
“guerra” de novos contornos, marcada pela globalização, entre os de cima e os
de baixo. As elites que gerem o sistema e aprofundam a integração e um grupo
crescente de excluídos dos benefícios económicos, culturais e sociais deste
processo.
Enquanto
estilhaçou as clivagens partidárias do Reino Unido do pós-guerra, o referendo
britânico funcionou como uma prova dos nove desta tendência. Mas para onde quer
que nos viremos na Europa percebemos que os fundamentos estão presentes: uma
parte muito significativa da população europeia não acredita na União Europeia
e o sistema partidário do pós-guerra não sabe o que fazer com essa descrença.
Umas vezes ignora os sinais e é dizimado; noutras, cavalga a onda, cede ao
populismo e viola o seu código genético demoliberal.
A
consequência imediata do Brexit é,
precisamente, abrir a possibilidade de fragmentação política da Europa. Passou
a ser possível realizar referendos e um Estado-membro pode negociar a saída. Se,
agora, para vacinar a Europa, a UE impuser condições draconianas ao Reino
Unido, as consequências económicas e financeiras serão devastadoras; se a UE
permitir uma saída suave, as consequências políticas serão trágicas – outros
países perderão o receio.
Com
a crise económica por resolver, com uma crise financeira prestes a regressar –
até com maior intensidade – e com a crise dos refugiados, a Europa só tinha uma
saída política: aprofundar a integração e desenhar uma “união mais perfeita”.
Mas como a UE é formada por 28 democracias, onde a soberania popular impera,
este caminho é, hoje, inviável. A combinação de desemprego estrutural, projeto
europeu construído nas costas dos europeus e eleitorados envenenados por
retórica populista não permite qualquer veleidade para-federalista.
Dificilmente
será possível continuar a falar de uma Europa unida. O Reino Unido terá agora
de gerir uma saída de contornos financeiros difíceis de antecipar e que pode
fragmentar politicamente as ilhas, mas as consequências para uma Europa
amarrada de forma ligeira a uma moeda única podem ser igualmente profundas. Se
tudo continuar como nos últimos anos, chegará o momento em que teremos a
Alemanha a repetir: “nós não somos a França”.
publicado no Expresso de 25 de Junho