Há uma estranheza evidente na
atribuição do Nobel da literatura a Bob Dylan, mas há também algo de natural na
escolha da Academia.
Dylan é um autor e acima de
tudo, na definição exata de Leonard Cohen, “o Picasso da canção”. Alguém que,
primeiro, alinhou com o cânone para o levar mais longe (o legado de Woody
Guthrie), para logo depois reinventar o lugar da canção de protesto, ao ponto de,
por vezes, já nem ser canção e ter deixado definitivamente de ser de protesto. Sem
Dylan não haveria Springsteen, não escutaríamos da mesma forma Townes Van Zandt
e a reinvenção alt-country e folk de Bonnie Prince Billy aos Wilco seria
inviável. Da mesma forma que a canção como veículo primordial para a palavra,
nos Mountain Goats de John Darnielle, seria uma impossibilidade. Dylan não
criou tudo, mas abriu as portas para quase tudo o que se seguiu e para o que o tem
acompanhado.
Dylan é um inovador radical e
a sua música provoca um certo desconforto, o medo que pressentimos de um “som
estrangeiro”. Mas ser um cantor disruptivo e inovador, por si só, não faz dele
um escritor. Contudo, se acreditarmos que a força da literatura reside na
capacidade de criar uma voz singular, dissonante e desafiante, Dylan tem na sua
lírica uma obra literária com poucos paralelos.
Se nos ficarmos pelos
cantores, é certo que Cohen – companheiro de percurso mais próximo do que se crê
– tem uma obra mais vasta e mais próxima da literatura como a entendemos. Ao
contrário do canadiano, o “bardo do Minnesota” nunca foi romancista popular e a
sua poesia não é anterior, nem existe para além das canções. Se bem que
“Chronicles, vol. 1” seja, mais do que autobiografia, uma reflexão muito
interessante sobre o seu percurso, em Dylan a palavra é inseparável da música e
uma está amarrada à outra. Contudo, Dylan tem, a seu favor, a criação de um
universo e, com ele, de um adjetivo, “dylanesco”.
O traço artístico mais
sublinhado em Dylan é a sua natureza camaleónica. Mudou muito, reinventou-se e,
enquanto se reinventava, mudou a música, provocando estranheza e desconfiança
no seu próprio público: o Judas que pegou na guitarra elétrica para
revolucionar a folk, abandonar a canção de protesto e desfazer qualquer ilusão
de que era o porta-voz de uma geração; o filho dileto de Nashville que, entre
vénias a Cash, devolveu legitimidade cultural à country; ou o crooner sentimental que destilou o “Great
American Songbook” a níveis de limpidez de surpreendente grandiloquência ou até
o cantor que, numa paradoxal viragem do destino, se enredou em sermões
evangélicos. Scorsese fixou esse Dylan múltiplo, que ninguém conhece na sua
plenitude, amarrado a uma errância criativa, no notável “No Direction Home”.
Mas o Dylan que vence o Nobel
pode bem ser outro. O Dylan que tem uma lírica dylanesca. Uma poesia que não
resulta de um exercício racional, mas, pelo contrário, de um impulso criativo
de sentido ambíguo e que é inseparável da música. Uma poesia que pode ser lida
e interpretada de todos os ângulos, sem que nenhum se sobreponha. Uma voz
rebelde e desconcertante que não está amarrada nem ao seu eu singular nem,
muito menos, ao contexto circunstancial da sua época. Uma voz intensa que tem
uma poética indeterminada, a um tempo poesia de intervenção política e espelho
do seu tempo social, a outro, lírica amorosa, a resvalar para o
sentimentalismo. Bob Dylan é todas as vozes, mas não foi apenas todas as vozes
ao longo da sua carreira ou quando escutamos os seus discos.
A sua grandeza enquanto
escritor está na forma como, de forma concisa, consegue captar, num mesmo poema
e numa curta canção, visões variadas, contraditórias e um eu múltiplo, sem
nunca deslindar exatamente o sentido último da mensagem. Até porque, muito
provavelmente, aliás, o sentido último se perdeu, nunca existiu enquanto
construção racional ou a responsabilidade de o traduzir é de quem escuta as
canções e ouve as palavras. Se a literatura for apenas uma tentativa falhada de
busca da verdade, é bem provável que se encontre mais verdade e universalidade
na ambiguidade dylanesca do que em muitos outros autores, bem mais canónicos e
percepcionados como escritores.
publicado no Expresso diário de 13 de outubro