Um rapaz de 11 anos deixou a sua escola em Roma para desaparecer durante várias horas. Alarme lançado por pais e professores, a polícia acabaria por encontrá-lo na marginal de Óstia, são e salvo. “Tinha vontade de ver o mar”, explicou o miúdo às autoridades. Guardo esta notícia que li no La Repubblica há uns quantos anos como dupla evidência empírica: prova de que a realidade imita a ficção, mas, também, que o mar é o destino indicado para a fuga.
Na verdade, eu já tinha visto esse mesmo rapaz a fugir para o mar. Chamava-se Antoine Doinel (o alter-ego que o realizador François Truffaut (1932-1984) imaginou para rescrever a sua vida) e protagonizava os “400 golpes”. Na cena final do filme (que foi também o marco fundador da Nouvelle Vague), Doinel caminha num passo apressado numa estrada no meio do campo. Foge, nessa altura já o sabemos, do desinteresse dos pais e da incompreensão dos professores, mas o que ainda não sabemos é para onde caminha. Para isso basta o último minuto do filme. O passo desacelera e a fuga, no que é também uma demonstração de auto-afirmação, encontra o seu ponto de chegada. Uma praia deserta, um arregaçar das calças e os pés molhados pela maré, que logo apaga as marcas dos passos. Depois, vira-se para nos lançar, através da câmara que enfrenta de frente, o mais destemido dos olhares. Eu sei o que senti quando pela primeira vez Doinel olhou para mim através do zoom da câmara de Truffaut: inveja. O olhar de desafio era também uma amostra da liberdade concreta de que ele gozava e que a nós, adultos, fica de repente interditada. Aquele jovem, em permanente flirt com a marginalidade, cristalizava a clivagem entre o mundo exíguo dos adultos e as possibilidades infinitas que se abrem na juventude. A praia era a fronteira, mas, também, o espaço para o escapismo em direcção a uma independência essencial, sem qualquer tipo de mediação.
Acho improvável que o miúdo romano que fugiu para Óstia tenha visto os “400 Golpes”, mas parece-me bastante provável que Truffaut tenha lido as “Férias de Agosto”, a colecção de pequenas narrativas que o escritor italiano Cesare Pavese (1908-1950) escreveu sobre o mar, as férias e as amizades livres da infância. Também nesses textos, agora reeditados em português, numa tradução de Ana Hatherly, se relata a história de um rapaz que acreditava que encontraria o mar se caminhasse sem parar na planície. O episódio é exemplar de um tema dominante em Pavese: o carácter mitológico da juventude, um passado ao qual não podemos voltar, feito de mar, de campos abertos e de férias grandes, mas de cujas recordações depende a nossa maturidade. São, afinal, essas primeiras imagens irrepetíveis de independência e de liberdade que permanecem intocáveis ao longo das nossas vidas. E é também a esse lugar que regressamos para nos libertarmos do quotidiano e para nos reconciliarmos com o resto da vida.
Há um ajuste de contas que fazemos diariamente com a nossa desconfiança perante os outros e perante o mundo. O que faz com que, como o rapaz romano, precisemos de concretizar a nossa vontade de ver o mar. De regressar a uma etapa inicial de despojamento e independência. Se chegaram até este ponto do texto terão reparado que nem uma vez falei de surf. Não era preciso: todos nós, que beneficiamos do prazer supremo de deslizar com uma prancha debaixo dos pés, estamos conscientes da graça de ter, nas ondas que surfamos, o nosso “Mar”.
publicado na coluna Sal na Terra da SurfPortugal.